quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023
segunda-feira, 23 de maio de 2016
A origem
Numa profusão de gametas,
rompe furioso membranas emaranhadas e estabelece-se no seu trono em
companhia adjacentes de neurônios, hormônios, sinapses e
elasticidade cerebral.
Nasceu. Relutou. Em
alguns momentos esperneou, aplicou pontapés. Finalmente cedeu. Sem
escolhas, o tempo de maturação se esgotou. Fazer o quê? O homem de
branco pareceu tascar-lhe uma palmada burocrática e o nascido
berrou. Primeiro teste para os pulmões. Inflou-os e não
economizou. Não teve vergonha de se esgoelar. Contrário àquele
ambiente frio, apresentava seu derradeiro manifesto através da sua
garganta, que por nada seria calada - Apregoam por aí que os bebês
choram convulsivamente por que o submetem à perda direta da mãe.
Acostumou-se desde cedo a navegar preso a um cordão. Não seria nada
fácil a adaptação ao novo ambiente. O pequeno limitou-se a
observar e absorver o novo mundo. Estranhamente, uma moça atrevida tateou-lhe o peito e checou suas articulações. Num exame quase fremente, ousou revelar sua identidade através de um carimbo no
pé. Abriu preguiçosamente os olhos ainda opacos. Fitou indeciso
as imagens distorcidas daquele objeto luminoso, que agredia sua pele sem
vincos. Tentou compreender as lágrimas da sua mãe e o sofrimento do
seu pai, abraçado aos joelhos, como se tivesse superando uma crise
de náuseas. Uma maca e um vidro grosso o separam de pensamentos pastosos e
inconstantes. Era, naquele instante, apenas um embrulho.
Movimentava-se com dificuldade, como se estivesse sendo
constantemente puxado por uma infinidade de pegajosos fios
espessos. Outrora imerso numa substância morna similar ao magma, fora
submetido a um planeta de criaturas tortas, assustadoras. Um sorriso
tímido invadiu suas feições recém expulsas do
invólucro protetor. A substância evocou as memórias marcantes de sua vida
anterior: O útero. Nostálgico, Vinham-lhe como profecias em cada
rosto, o gosto dos primeiros passos, o sabor de cada tombo
desastrado. Tão rápido quanto o pequeno fora expelido de sua
dedicada mãe, o tempo dissolveu-se, volveu em visão turva, percepção,
câmeras, flashes e lembrancinhas. Chorou novamente. Queria voltar! Sabia que havia sido real, um real líquido que escapava por entre os
dedos, mas real. Não queria este mundo tão palpável e raso.
Cobiçava voltar a nadar. Se possível, a seu tempo, aprender a voar.
O nascido
nunca mais voltou ao refúgio uterino. Não havia mais espaço para contestar.
O destino vencera.
Começou a morrer no momento em que nasceu.
quarta-feira, 4 de maio de 2016
Perspectiva ampliada
Antológico distender
impressões, antes tão curtas, dos aspectos tão escrupulosos de
Bruna...
Escurecia. Início de
um rigoroso inverno. Logo a noite estaria cerrada. Sentados ao lado
de duas janelas grandes de vidro, olhavam a chuva torrencial que
castigava sem dó as vidraças. Bem que o contexto poderia sugerir
uma chuva suave, onde poderiam seguir as gotas com os dedos. Seria
muito mais romântico! Quem sabe uma neblina fina, com uma lareira ao
fundo... À revelia, não se sucedia exatamente assim... Bruna, exercia
ali toda a frieza milimetricamente calculada há anos. Garota de
programa, morena, lábios selvagens, exalando sensualidade. Da carne à alma, era pura
tentação. Tamanhos seus atributos de beleza, era amplamente
requisitada. Sem nenhuma espécie de constrangimento, sentia-se
inteiramente ressalvada pela sinceridade que articulava sem rodeios.
Refutava qualquer indício de intimidade que pudesse configurar
envolvimento. Segundo ela, beijo na boca envolve língua e, por conseguinte,
privacidade. Sexo desprotegido suscita contato direto e ilimitado
entre peles. Sua independência não admite tais exceções. Do alto
da sua perspicácia, havia compreendido que todo corpo nu torna-se
presa fácil.
Chegou em boa hora um café que fumegava ante os vasos sanguíneos contraídos e asfixiados pela falta de oxigênio. Agarravam-se às xícaras como a defender territórios. Bruna, erguia barricadas em torno das suas convicções. O afoito estrangeiro a aceirava com ares diabólicos. Tentava dissuadi-la do seu aparente desprezo. Experimentada, plenamente afeita às multiplicidades, algo soprava-lhe aos ouvidos para não fixar os olhos em quem a cobiçava. Havia um risco claro que a condição que há tempos adotara, pudesse sofrer abalos. Compreendia a gama de pareceres delicados: De um lado a controversa polêmica entre a ética e os valores. Paralelamente, a farsa e a dissimulação da normalidade. Considerava inadmissível todo juízo de valor que certamente lhe seria imputada. Somente ela tinha conhecimento de onde apertavam-lhe os calos. Era indubitavelmente um produto em exposição. Contrapondo-se, há que se mensurar a insatisfação daqueles que a procuram. Usava sim à exaustão, todas as peculiaridades que a natureza generosamente a concederam. Não causava-lhe embaraço comercializar o corpo. Pesava-lhe tão somente o delito de cunho social e convenhamos, hipócrita.
O espaço que dividiam era mínimo, o que exigia que ambos se contraíssem no encosto das cadeiras. Distraídos nos caminhos da fumaça que libertavam pela boca, entre uma frase e outra. Fez-se de repente um silêncio retumbante, daqueles que coagem até o piscar de olhos. Aquela fenda precisava ser encerrada, para que outros encontros pudessem se desenvolver.
Haja o que houver, sempre haverá alguém querendo puxar "à força" uma companhia para mais um café.
Chegou em boa hora um café que fumegava ante os vasos sanguíneos contraídos e asfixiados pela falta de oxigênio. Agarravam-se às xícaras como a defender territórios. Bruna, erguia barricadas em torno das suas convicções. O afoito estrangeiro a aceirava com ares diabólicos. Tentava dissuadi-la do seu aparente desprezo. Experimentada, plenamente afeita às multiplicidades, algo soprava-lhe aos ouvidos para não fixar os olhos em quem a cobiçava. Havia um risco claro que a condição que há tempos adotara, pudesse sofrer abalos. Compreendia a gama de pareceres delicados: De um lado a controversa polêmica entre a ética e os valores. Paralelamente, a farsa e a dissimulação da normalidade. Considerava inadmissível todo juízo de valor que certamente lhe seria imputada. Somente ela tinha conhecimento de onde apertavam-lhe os calos. Era indubitavelmente um produto em exposição. Contrapondo-se, há que se mensurar a insatisfação daqueles que a procuram. Usava sim à exaustão, todas as peculiaridades que a natureza generosamente a concederam. Não causava-lhe embaraço comercializar o corpo. Pesava-lhe tão somente o delito de cunho social e convenhamos, hipócrita.
O espaço que dividiam era mínimo, o que exigia que ambos se contraíssem no encosto das cadeiras. Distraídos nos caminhos da fumaça que libertavam pela boca, entre uma frase e outra. Fez-se de repente um silêncio retumbante, daqueles que coagem até o piscar de olhos. Aquela fenda precisava ser encerrada, para que outros encontros pudessem se desenvolver.
Haja o que houver, sempre haverá alguém querendo puxar "à força" uma companhia para mais um café.

quarta-feira, 20 de abril de 2016
Metáfora
Aquele estranho som do
aço raspando o couro endurecido. A lâmina delgada é projetada
lentamente no ar, brilhando preguiçosamente quando erguida da bainha, contendo sua fúria. Movimentos simples e rústicos feitos pelos
pés descalços e sujos, nem imaginariam serem acompanhados pela
ponta afiada, sibilando baixinho, enquanto corta seu caminho pelo ar
morno do final de tarde. Aqui e acolá, vai dançando sem pressa, sem
pensar, deixando apenas a canção do aço embalá-la. Cada golpe preciso e
toda estocada, firme. A espada já não mais treme quando deixada na
horizontal, e logo depois de um bote certeiro. Ela até agradece a forma
carinhosa com que é manejada, desferindo cortes, arranhões e dor
por onde passa. Escrevinha olhares oblíquos e traiçoeiros nos punhos cerrados. Esquiva-se, escorrega com elegância das tocaias. Safa-se
enfim! Algumas vezes sucumbe. É natural. Desconheço àquele que sai ileso de
todas. Destemida, continua seus passos intermináveis. Tudo o que lhe
resta quando se acalma, são os gemidos e coisas de quem um dia foi
dançarino. A vida, na sua complexidade garantida, exige uma
coreografia de peito na boca. Intensa, extrema e inteira. Exatamente como
ela. Reinventa-se, se refaz, enquanto limpa a lâmina cuidadosamente num trapo que
encontra ali perto. Acompanhando toda
essa senda, um Deus ou Mestre de Danças, parado e olhando tudo com
cuidado: Desde os populares bailes de carnavais aos sofisticados
recitais de óperas. A fé e as convicções, sejam elas dogmáticas ou
tolerantes determinam no que acreditar. Desistir ou persistir? Eis o
dilema! Cansada e suja, mas não morta! Ignora todo aquele sangue secando em
sua pele. Suporta os pequenos ferimentos que ardem, os músculos que reclamam como se os contorcessem.
Ela observa um homem à sua frente, desembainhando a espada,
desviando dos corpos estendidos no chão. Simbolizados, amontoados de fracassos, decepções e
perdas irrecuperáveis. Em algum lugar, a mulher volta a
cantar sob o som do beijo do aço, ecoando nas vielas estreitas. Nada a fará declinar da sua dança. Contrária aos olhares estáticos, fotográficos, atraí-lhe a ideia de ser impelida a atingir os seus sonhos mais profundos. Refuta integralmente a concepção de transformar-se num simples produto póstumo dos homens: A incerteza.
segunda-feira, 28 de março de 2016
Voz de um violino
Lentamente arrumara os
cabelos. Com um chumaço de algodão, retirara das pálpebras o
excesso de insônia e cansaço. Apreciara, como de costume a quase
síndrome de narciso, que eventualmente a assediava. Tudo sob a luz
tênue que lambia de leve o espelho. Os olhos felinos percorreriam sem pressa, de cima abaixo, cada milímetro do seu corpo. Na
janela entreaberta o balé frenético das cortinas. Tudo tão
perfeito, tão adequado, tão confortável! A não ser pelo detalhe
do hematoma que sombreava-lhe o peito. Sentara na cama e observara em
silêncio aquele ingresso para um concerto de violino. Sentira com
prazer, aproximar-se o encontro mágico entre o som e a poesia. E de
quebra, teria acesso a bons momentos ao lado de excelente companhia.
Sorrira com lábios indomáveis até o telefone emitir um estridente
chamado. Aquele objeto sacudira-se em desespero, suplicando ser
atendido. Queria, ou melhor, exigia-lhe atenção! Tomada de um gesto
reflexo apoderara-se do aparelho aflito e o aplacaria antes de
voltá-lo ao gancho. Ainda exultante, comemorara consigo a ratificação do compromisso para logo mais à noite. Sem muito calcular, escolhera um vestido cinza,
ajustara-o em seu corpo em boa forma. Sobre o vestido sóbrio,
incorporara-lhe um casaco negro que alcançava-lhe fácil as
panturrilhas. Após uma borrifada do seu perfume preferido, aspergira
uma atmosfera autentica de personalidade. Flagrara-se sobraçada a
uma caixa marmorizada, recheada de história: Bilhetes, lembranças, datas, fatos
e fotos. Surpreendera-se com o prontuário que o tempo lhe concedera.
Naqueles dados, estavam implícitos expectativas - Por mais que
busque-se omitir, ninguém faz nada sem interesse. No caso dela,
queria respostas ao som do violino. Estava tudo planejado. Saberia se
valeria a pena investir. Fizera uma longa viagem imaginária antes de
deslocar os pés de bailarina para fora do chinelo. Sapatos de veludo
pretos foram colocados e os saltos altos e finos confeririam-lhe um ar
altivo e sedutor. O coração ansioso galopara. O relógio martelara
do outro lado do quarto. Parecia satirizar sobre sua impaciência.
Pontualmente cravado. Eram 22 horas. O
compromisso dar-se-ia às 23 horas. Com o violino amparado no ombro, o
músico de olhos fechados abriu o espetáculo. De imediato,
imaginara-se em consonância com uma dança leve, onde os passos puxavam
as notas. As mãos definiriam uma troca de poderes, onde cada uma
procuraria o comando. Numa mistura de cheiros, toques,
melodias e outras sensações, faltaria os lençóis serem consultados.
terça-feira, 29 de dezembro de 2015
Tarde no cais
Final da tarde, sentado
à beira do cais, as pernas em pêndulo, pés riscando a água e provocando
oscilações no mar e nos pensamentos. Nuvens esfomeadas flutuam,
parecendo engolir umas às outras, num balé extravagante. Outras, se
movimentam displicentes. Chocam-se entre si sem o menor senso de
direção. Aqui e acolá, insetos abusados ensaiam ataques, logo
abafados pelo rufar das asas de uma imponente borboleta.
Avisto um solitário
pivete, franzino, cabelos espetados e tostados, metido numa embarcação improvisada de toras, barbantes, tecidos brancos rasgados
e muita criatividade. Ignorando os imprevistos da travessia
concentra-se no seu objetivo decisivo desde as fraldas: Navegar os
sete mares com a desenvoltura de um veterano. Determinado, decifraria os rumos
escondidos nos mistérios das correntes. Sentia-lhe respingar na
testa e no peito pingos d'água e orgulho. Era-lhe notável a ambição
pelo status de lobo do mar. Revoltava-lhe não ter nascido nos tempos
de piratas. Não ter partilhado das caças ao tesouro. Eram-lhe
pertinentes assuntos de Moby Dick, Barba ruiva, navios fantasmas e
outras maresias.
Imaginava-se rompendo
furiosas tempestades, singrando fácil as veredas das águas,
transpassando a potência dos ventos. As intempéries naturais não
conseguiriam demovê-lo sob hipótese nenhuma do que o farol anunciava:
Sensação de liberdade. Era bonito de se ver, um pequeno ponto
aventureiro, convencido soberbamente ser um marinheiro escolado,
aguentando o balanço, soltando as amarras. Único tripulante de uma
embarcação sem rotas ou mapas. Seu destino não tinha inscrição,
tamanho ou alcance. Não cabia-se nas simbologias do alvo lenço das velas.
Da proa,
sonhava alto. Em terra firme ou em mar grosso. De moleque topetudo à
marujo coroa. No convés, um coquetel de batéis desarvorados, promessas em suspenso e destinos insólitos.
sábado, 7 de novembro de 2015
Batalha de egos
Sentada junto ao exílio
dos seus pensamentos, imersa em si mesma. Alheia a qualquer espécie de apelo externo, com as pernas entrelaçadas e o celular pousado
no colo (como a proteger um frágil bebê) Ah, o cigarro!
Não podia faltar-lhe o adereço. Movia-o entre os dedos, ainda
apagado. Sensualmente, fazia malabares em giros transversais sem qualquer sincronismo estabelecido. Queria a reclusão de estar só. Nenhuma
aproximação fazia-se interessante. Tinhas um olhar longínquo,
perdido, solitário. Fez-me arrepiar da cabeça aos pés ao sorrir
para um garçom e sussurrar com uma voz rouca, abafada:
- Por favor, o menu!
Seu semblante esforçava-se para não transparecer emoção. Eu, de um saber cá de dentro, conhecia que intimamente ocultava até de si mesma, as angústias que a cercavam e teimavam em roçar-lhe as orelhas. Deveras impertinente, o acaso zombava da sua aparente serenidade. Queria ver o circo pegar fogo!
- Por favor, o menu!
Seu semblante esforçava-se para não transparecer emoção. Eu, de um saber cá de dentro, conhecia que intimamente ocultava até de si mesma, as angústias que a cercavam e teimavam em roçar-lhe as orelhas. Deveras impertinente, o acaso zombava da sua aparente serenidade. Queria ver o circo pegar fogo!
Avassaladoramente, fui
atraído por aquela força distraída. Quando todos os holofotes
justamente se voltavam para ela, mantinha-se absorta com guardanapos.
Aproximei-me com
cuidado, driblando vagarosamente mesas e obstáculos, não perdendo
de vista o objetivo. Não queria de nenhuma maneira sobressaltar-lhe.
Num ímpeto reflexo, instintivamente viraste o rosto na minha direção.
Com um sorriso pela metade, pouco sincero, procurastes desestimular
minha ousadia. Sua postura ostensiva e inflexível abatia qualquer esboço de cantada.
Antes que pudesse
antecipar-se, lancei-me rápido e tentei embaraçar-lhe:
- Posso ajudar a arrastar a mala?
Secamente, sem levantar os olhos, devolveu:
- Posso saber do que está falando?
Prossegui:
- Não sou halterofilista, mas pensei que poderia atenuar o peso que carregas nos ombros.
- Posso ajudar a arrastar a mala?
Secamente, sem levantar os olhos, devolveu:
- Posso saber do que está falando?
Prossegui:
- Não sou halterofilista, mas pensei que poderia atenuar o peso que carregas nos ombros.
Fui incisivamente
interrompido:
- Não me venha com
psicologia de botequim!
Retruquei-lhe veemente!
- Não me interprete como uma ameaça! Meu intuito é conhecer além (bem além) de uma garota interessante. O propósito da aproximação não envolve provocar tua fúria. Insultar-lhe assim de graça me faria um sujeito idiota, estúpido.
Ela pareceu derreter a
armadura...
- Desculpe! Não quis ser grossa!
Arrematei:
- Vou
deixá-la à vontade. Sei reconhecer quando estou sendo
inconveniente.
Ao virar-lhe as contas, senti as súplicas atingir-me a nuca:
- Mas... e o seu
nome?
- Senta aqui! Vou abrir o jogo! Momentos atrás, suspeito que tenha perdido o grande e único amor da minha vida. Um abraço era tudo que eu precisava.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015
Engano
Paul, arrogante e irascível,
buscava alguma orientação que pudesse desanuviar-lhe as tormentas.
Como um inseto girando em torno da lâmpada, rastreava indícios de
equilíbrio. Suficiente, do couro cabeludo à ponta do pé, era-lhe
inadmissível ver sua estrutura esfarelando diante de uma emoção
desconhecida que o contrariava. Sentimento, na sua ótica, resumia-se
em tudo que pudesse conduzir. Fugindo disso, era estupidez.
Apoiara as mãos no
mogno e olhara de soslaio no espelho. Desconfiado, suspeitara que
estava deixando escapar sua estabilidade. Como presumia, o reflexo
que o enfrentara, estranhamente não parecia-lhe familiar. Olheiras
gigantescas circundavam qualquer prenúncio de horizonte. Sentira as
costas contraírem-se, os músculos retesarem-se, os punhos
cerrarem-se. A garganta fora tomada por severa aridez. Aquele corpo
tão supostamente perfeito, parecia impreciso. O deserto demandava um oásis.
Precisava desesperadamente de água. Talvez, se umedecesse as
engrenagens pudesse trazer à tona algum resquício de sanidade.
Dirigira-se à mesinha
de cabeceira e apanhara um copo. Num ímpeto, imaginou estilhaçando-o
contra a parede. Como se o simples ato de estatelar aquele objeto
contra uma superfície sólida, por si só, restabelecesse sua
autoridade. Todo o corpo tremia. Sempre esteve no comando. Pela
primeira vez sentia-se em segundo plano. Com sede, bebera. Sentira um
sabor amargo. Aspectos ásperos sabotaram seu paladar.
O desequilíbrio
alcançara a exaustão extrema, obrigando-o a deixar-se vencer e
pousar um joelho ao chão. Por um ciúme selvagem perdera sua
capacidade lógica de raciocínio. O diafragma contraíra-se
violentamente, causando uma dor insuportavelmente inexplicável.
Acabara de compreender o motivo das loucuras serem cometidas, quando
o controle das percepções são perdidas. Percebera em definitivo,
não haver isenção para aquele que decide ser absoluto.
Repentinamente sentira
algo úmido cair-lhe na mão. A última coisa que queria era
admitir-se fraco. Chorar representava o ápice da fragilidade.
Esbarrara na prova inequívoca do farrapo que se tornara.
Prometera-se desde muito cedo a não fraquejar. Chorar parecia-lhe
outorgar o fracasso. Inicialmente tentou se convencer que aquilo não
era exatamente uma lágrima. Poderia até ser uma gota salgada que o
olho vertera. Por uma série de razões, menos por amor. Sentira-se
próximo da infantilidade. O choro arrancara-lhe com violência o
curativo. Fazia-lhe vulnerável. Gostaria de esconder-se de si mesmo,
mas o espelho delator dava-lhe a visão plena do seu estado.
sexta-feira, 21 de agosto de 2015
Pela janela
Era começo da tarde...
Andares abaixo, trafegavam carros apressados e buzinas abafadas por
sirenes em estado de emergência. Pela janela, observava um grupo de
meninas com meias brancas galgando os joelhos. Algumas de cabelos
lisos, cortados ao meio. Outras de madeixas estiradas, quando não
aprisionadas por presilhas curtas, amarelas, verdes e vermelhas.
Haviam ainda as adeptas dos cacheados, tingidos e de franjas ocultando
a testa e suavizando rostos, supostamente de dimensões desagradáveis. Entre elas notabilizava-se uma aparição que
saltitava feliz em amplitude compatível à longitude das suas
pernas. Com seus aparentes dezessete anos, formação óssea
incompleta, escapavam-lhe imperfeições que tornavam-na a mais bela
e atraente de todas. Destacava-se como um monumento naquela associação de diferenças. Raios de sol lançados na vertical acentuavam o tom
alaranjado que lhe nomeava de ruiva. O calor da
energia que aleatoriamente empregavam fazia surgir-lhe nas têmporas, gotículas de
suor que deslizavam sobre suas faces. Em especial, no salpicado de sardas que habitava a minha escolhida. Sua estatura extravagante lhe conferia um ar desengonçado que
chamava a atenção. Os ombros desalinhados comprovava a desajeitada
figura que me arrebatara. Aquela estrutura grande, de dimensões
incomuns, parecia desconfortável, com dificuldade de espaço para se posicionar. Braços longos ensaiavam estabanados movimentos largos.
Curvava-se sobre uma pasta preta, numa mistura displicente de cuidado
com demasia. Comecei a contemplar a beleza que não precisava ser chancelada pela plateia. Como eram intensas nas simples sutilezas de se equilibrarem
no meio-fio! Passeavam em ordem sem imaginar que de longe eram observadas. Estava ali a classificação genuína da sensualidade
sem pose. Atento, sob aquela tarde ociosa, ajustava antenas analíticas no encalço gracioso, que aquele conjunto juvenil despertara. Não eram os hormônios que borbulhavam ante aquele cenário (testosterona absolvida). Atrás daquela vidraça postava-se um homem comum, de meia idade. Surpreso exclusivamente, perante aquela frequência despretensiosa, que ingenuamente protagonizavam. Hipoteticamente anônimas, simplesmente giravam, se esbaldavam aos berros, se
esbarravam em direções opostas ao alvo do destino: O colégio
testemunhava de longe...
terça-feira, 4 de agosto de 2015
Breve intervalo
Numa noite qualquer, despenca uma uma chuva torrencial com pingos grossos e tão violentos que mais parecem ácido. Combinação perfeita para o humor que a despertara. Ela, semblante impassível, mantêm-se recostada no braço da poltrona. Estava farta de ser confundida com uma menina fútil e riquinha. Era rotulada de vazia e sem conteúdo. Equivocadamente, elaboram normas ridículas, baseadas em superficialidades. E para piorar, essa tempestade repentina ainda ameaçava seus planos de exterminar mais um cigarro. Por respeito aos irmãos, ainda crianças, evitava expô-los à fumaça assassina. Suas curvas esculturais, seus olhos azuis, cabelos lisos e curtos, deixavam a nuca à mostra. Existem na mulher partes de extrema sensualidade que quase nunca são notadas. As relações em geral sofrem naufrágios à medida que estímulos visuais são subvertidos pelas sensações. Sob um jeans justíssimo, via-se delinear os contornos do pecado. As formas insinuantes e voluptuosas da quase perfeição, que erroneamente intitulariam de objeto. Esgotaria-se até a última gota para não ser identificada como uma casca apresentável. Convicta da sua supremacia como ser humano, restaria-lhe a trégua do silêncio. Cravada no dedo anelar esquerdo uma tribal em tinta preta. Um anel gigantesco de prata recobria o desenho, passando a impressão de uma aparência adequada aos olhos convencionais. Enquanto isso, o dilúvio perde força, torna-se moderado, a ponto de finalmente liberá-la. Em trote, alcançaria em dois tempos a padaria, próxima do seu destino de fuga habitual: A praça, que servia de desafogo a outros jovens e seus conflitos. Finalmente veria os pulmões livres para o hábito, que embora nocivo a colocava no rol dos “normais”. Atravessara a avenida como um raio. Infringira por certo, o limite de velocidade. Violara seguramente, regras de sinalização ao ignorar o farol e o significado de suas cores.
Um aroma forte e característico aspergindo detrás do balcão.
Aqueles instantes de pausa proporcionam após o cigarro, a combinação exata do sabor inigualável que chamam de amargo estimulante. Absorta, observava uma máquina de café gemendo e apitando o término do longo
processo. Atrás de uma portinhola ouvia-se um tilintar curto de moedas
em troco. O atendente que tirara o café, trocaria a xícara de mãos,
sentindo a temperatura exceder os 90o. O que certamente seria
suficiente para derreter-lhe a pele e quase dissolvê-los os dedos.
Após o ritual do consumo quase afrodisíaco, entregaria-se ao silêncio resignado das próprias explicações. Calar-se não significava consentir, nem admitir. Preferia a reclusão definitiva de estar certa. Isso lhe bastava. Em passadas contidas segue desviando-se das poças d'água. Em cerca de trinta minutos estaria em confronto direto com a realidade. Tudo não passaria de um simples intervalo.
sábado, 11 de julho de 2015
Recortes do tempo
A imponente lareira se
exibia confortável em frente da mulher grávida. Com ternura,
era-lhe peculiar o doce tom
materno que a circundava. Embora os olhos amendoados chispassem às
vezes, fagulhas fulminantes de antipatia. Alta, esguia, possessiva,
acariciava o ventre volumoso em posição de proteção absoluta. A
gestação em fase avançada se aproximava do final. A irritação e a
ansiedade disparavam indícios claros da menina dando lugar à
mulher. Segura, demonstrava desenvoltura com o peso extra que
carregava. Mãos em fricção, pernas excitadas e um vapor condensado era eliminado pelos pulmões encolhidos. Partículas de água em
suspensão eram lançadas por espirros. O inverno bravio simulava o
gelo dos alpes. As janelas pareciam dançar com a ventania revolta
que subitamente se manifestava do lado de fora. Um cachorro felpudo
acompanhava freneticamente os passos de Jeff. Ambos brincavam de voltar
das caçadas, dos mergulhos nas florestas mais escuras. Fingiam que nada seria modificado com a chegada do primogênito. Esforçavam-se para simular um cotidiano habitual. Pobre Jeff!
Jovem garoto com medo de crescer! Altura mediana, cabelos encaracolados,
embrulhado numa malha grossa e um casaco forrado com lã
de carneiro, o que lhe emprestava uma aparência bem mais atarracada,
dado o enorme volume que a roupa lhe conferia. Sobre os cabelos anelados, uma boina típica dos senhores Portugueses. A gélida brisa que
sitiava o imóvel, encobria a história feliz que irrompera sobre
qualquer projeto de Sarah e Jeff. Encontraram-se ao acaso, numa situação avessa ao caminho dos apaixonados. Esbarraram-se por coincidências tolas, sem qualquer fato marcante. A não ser pela imediata repulsão que ambos sentiram. Sarah, parecia-lhe a imagem da presunção. Tinha um certo ar de autoridade que não suportava. Jamais toleraria qualquer esboço de arrogância. Como se detivesse todos os direitos adquiridos sobre a verdade. Enquanto Jeff parecia-lhe um ser simplório, sem metas, sem ambições. Definitivamente, estava decretado. Não se envolveriam. Estava fora de cogitação qualquer ilação de possibilidades. Aliás, não acreditavam mesmo nessas baboseiras de coraçõezinhos e suspiros diante do amor à primeira vista. Pareciam-lhe improvável que a atração surgisse assim... Selvagem, sem cheiro, sem pele, sem toque, sem tempo. Não eram de todo céticos. Embora reticentes, não desdenhavam que algo os surpreendessem. O pragmatismo e objetividade não lhes congelaram por dentro, nem robotizaram suas emoções.
Estabelece-se a partir daí estranhas conspirações, convergências esquisitas. Que ironia! Tiveram que reconsiderar seus conceitos acerca do destino. Ambos descobriram que existiam pensamentos exaustos que precisavam de um ponto para repousar. Encontraram entre eles as reservas que se buscam para serem completos. Contrapondo-se ao frio do inverno, o calor da nova família bastava.


terça-feira, 16 de junho de 2015
Através do espelho
Um jovem esperto, pele
escura e olhos separados por sobrancelhas arqueadas, lembrando as
orelhas dos felinos em riste, desconfiadas, cautelosamente à
espreita, prenunciando ataques partindo de todas as direções. Cabelos negros
e arredios, nariz largo e narinas ávidas por mais oxigênio, pernas
extremamente finas e longas; de tão livre, corre sempre contra o
vento. As ideias fervilham sobre o sossego. Inspirações,
criatividade, energia, arrematam seu desenho. Com desenvoltura, descobre maneiras de vencer o tédio e a monotonia de estar
sempre só. Arremessa pedras num lago próximo, escolhidas pelas
formas mais compatíveis às suas mãos. Moldar as incompatíveis não é uma tarefa impossível. Diverte-se observando o rumo que tomam as pedras
que deslizam na superfície transparente daquele espelho, às vezes
azul, outras misturadas de marrom. Embevecido, acompanha o movimento em espiral dos seixos, as ondulações da água que aparentam material plástico, recebendo o choque.
Tem sonhos. Muitos
deles duradouros. Alguns fadados ao impossível. Outros mais
palpáveis e concretos. Recursos reduzidos enfraquecem suas ambições.
Queria embarcar num avião que risca o céu, deixando rastros de
fumaça e ilusões que se dissipam com o vento. Imagina-se rompendo
fronteiras desconhecidas, a bordo de um balão nas cores vermelho e
laranja. Do alto, supõe cenários fascinantes, panoramas em vários
tons, contrapondo-se ao preto e branco da sua rotina.
Além da natureza não
tê-lo favorecido com o abre portas da beleza física (atributos
cultuados à exaustão) pelos padrões das primeiras impressões, a cor da pele sugeria uma inferioridade que feria, tal uma haste pontiaguda.
Seria hipócrita se afirmasse que possuía familiaridade irrestrita
com religiões. O mais próximo que chegara, foi quando visitou uma tenda de candomblé, em companhia da sua mãe, que o enchia os
ouvidos: “Tem que acreditar em alguma coisa, menino!”. Admite
que aquelas pessoas vestidas de branco, o cheiro doce característico
das ervas, as danças e o coro que entoavam orações pela cura não o
convenceram. Não vou julgá-lo, (nem poderia). Ambos temos dificuldade em compreender os caminhos e desígnios de Deus.
Enojado das mesmas
injustiças, das repetidas carências de oportunidades, enxerga nos trilhos
da via férrea a oportunidade de abreviar parte das suas angústias.
O comboio certamente seria impiedoso (exatamente como queria). O
cortaria em dois. Antes de qualquer coisa, pensa em deixar como
herança um par de sapatos.
sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015
A experiência
Numa viagem das mais intensas, a uma velocidade
incalculável desembarco em outra civilização. Não interpreto o
solo que piso. Desconheço o material que paira sobre as minhas
indagações. Teletransportado em um objeto acolchoado, de formas
irregulares e de características luminosas. Selecionado para um
estudo estratégico da evolução terráquea e suas extremas
ignorâncias. Meu cérebro composto por dois hemisférios iguais,
dimensões uniformes, sinapses perfeitamente ordenadas. Nada
distingue ou justifica o motivo da escolha. Existem fatores
subjetivos que também desconheço. Num movimento lateral desloco o pescoço em direção a
um balcão de madeira envelhecida e capturo entre as luzes vibrantes, um calendário com algarismos garrafais
destacando o ano de 3010.
Portando um bloco como única munição contra uma
probabilidade de memória corrompida, persisto no hábito irritante
da anotação. Essa estranha mania de registrar o tempo e vasculhar
os cadáveres e seus sintomas. Começo a me interessar por
essa viagem insólita. Aos poucos vou compreendendo as veredas desse
intrincada missão: Desenvolver diálogos compreensíveis com outras
formas de vidas e a continuação das mesmas repetições. Humanos
sendo estudados, as diversas facetas de uma mesma moeda. O bem e o
mal em mutação, anjos e demônios se sofisticando... Entre nós,
esbarram-se na calçada, no elevador, nas escadarias, na sala em
frente à TV.
Sentado e restrito a uma cadeira rústica de
carvalho, compatível com a modesta decoração do Estabelecimento,
anoto, arrolo testemunhas invisíveis para o disparate. Um parágrafo em particular dessas anotações chama a atenção: Alienígenas cada vez mais se aproximam dos nossos costumes. Copiam emoções, aprendem a seduzir. Em segundos assumem aparências, brincam de ganhar. Entre
simultâneas tentativas acendo um calmo cigarro, o que me proporciona
tempo de sobra para contabilizar quantos miseráveis minutos perdera
com o vício. Posiciono-me de forma a alcançar um ângulo
confortável sem que os olhos sejam contaminados pelo sol furioso, que
invade os cantos do sábio boteco. Através da superfície
envidraçada escaneio o ambiente. Enquanto tento distraído, saborear
o veneno gasoso que preenche meus pulmões. De um ímpeto sem
precedentes, atiro aquele invólucro branco recheado de fumaça negra
ao chão. Do lado, uma funcionária me fulmina com um olhar tão
tóxico quanto o cigarro lançado ainda queimando aos pés do meu
desleixo.
De repente a porta abre-se de par em par, fazendo
surgir uma moça de pele branca, esboçando um sorriso insidioso,
levemente irônico – Quase imperceptível. Gingando seus quadris
entre as mesas, me interpela e definitivamente me convence, sem
esforço algum. Começou a cair meu olhar em derrota. Envergonhado
pelas intenções vulgares dos instintos que por vezes assumem o
comando. As íris palpitavam ante aqueles imensos e profundos olhos
verdes. Existem nessa mulher duas identidades escondidas: O anjo, a
síntese da pureza, o paradigma do sofrimento calado. Em
contrapartida, a presunção do demônio, a que transporta a
sepultura dos vulneráveis...
Com a simples desculpa de haver conquistado o que
queria, deixa escapar...
Algo mais?
Sonolento e ainda desorientado encontro-me finalmente
materializado no ano de 2015.
segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015
Horizonte azul
Uma hora os créditos acabam. Falta paciência
até para a tolerância. Fartam-se das mesmas caras, dos mesmos
gestos, do mesmo tédio. Permitam-se a essas centelhas de
ostensividades. Não se furtem dos direitos legítimos de divergir.
Ser agradável sempre às vezes é previsível demais. Contrastando
com esse despertar de cara amarrada, sisuda, acompanha irônica e
livre uma massa azulada, se oferecendo inteira aos nossos limitados
limites. Tão distante, tão inalcançável, tão exuberante nas suas
aparições através dos milênios. Ressurge dia após dia majestoso,
contrariando a acepção da palavra imutável. Anos a fio, embrulhado
no mesmo uniforme. Renasce sempre otimista em zombaria aos
insatisfeitos.
Eis que surge intrometido o final da tarde,
vestindo confortavelmente um pijama. Além da contemplação das
vívidas cores, oferece também a probabilidade vespertina dos
bocejos de indiferença. O entardecer e a aproximação da noite tentam roubar a cena e estragar
o espetáculo com tonalidades alaranjadas. Manchando a faixa ininterrupta de anil e buscando enfraquecer os contornos seguros e
firmes da eternidade.
Interstícios, intervalos, dúvidas, competição acirrada no pódio. A natureza também produz batalha de egos. Nessa guerra não há vencedores. A disputa não se baseia no jogo de poder. Ambos se procuram, se complementam. Todos juntos, protagonistas e espectadores observamos e usufruímos dos privilégios das 24 horas.
Esse portal, aparentemente inviolável, além da
função irrefutável da estética reivindica seu status de
referência. Em especial aos que desconfiam da expressão: Ver para
crer.
terça-feira, 17 de fevereiro de 2015
Sem dramas!
A tempestade deu uma trégua; ainda que
momentânea... Assim funciona a desconfiança: Entre a pacífica
segurança e os rompantes transtornados das suspeitas. Empilhados
sobre lágrimas, as vítimas, as tragédias e a autocomiseração.
Alegando depressão apela para o golpe baixo da chantagem emocional. Existem
nesses eventos de isolamento, um certo nível de baixa autoestima,
associado a uma necessidade de autoafirmação. É preciso chamar
atenção. Fazer-se presente. Deprimente amar uma vítima negativa e artificialmente fragilizada.
Mulheres extremamente possessivas e ciumentas
geralmente se doam em pelo menos 5% e cobram nada menos que 100%.
Essa desproporcionalidade se reflete na fuga e completo
desinteresse. Não é pela busca do veludo de outras peles. A monocromia exaustiva das crises é que estimulam a dicotomia de outras possibilidades. Busca-se acréscimos, aditivos, complementos.
Enganam-se as que assumem essa postura de sempre
buscar a parte que falta. O ser humano, na sua perfeição é
inteiro. A sensação de voo desajeitado, de ninho inacabado é apenas parte de um capricho criado para dividir com o outro a responsabilidade de ser feliz. A vida é muito maior que essas faíscas de dúvidas. Concordo que não fomos criados para viver em clausura. Precisamos compartilhar abraços, confiança, espaços. Nosso fôlego expande-se a outros ares que ultrapassam essa bolha escura onde não se avista um palmo além das obstinações. Ou do nariz.
Nos joelhos, as feridas diante do amor
irracionalmente aprisionado. Pulsos marcados pela dor e desespero,
diante da simples possibilidade de não mais possuir. O
egoísmo de conservar a qualquer preço o controle. Manter entre as mãos o objeto da
obsessão. A possessividade leva às suspeitas e a perda de si mesmo.
Ninguém está imune a olhar para o lado... E nesse olhar furtivo, corre-se o risco de enxergar-se capaz de ver o que não via.
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015
Faz de conta
No plenário, o discurso efusivo do convencimento. No alto da plataforma vê-se sapatos espelhados e a sedução em
forma de oração. Murmúrios escapam sorrateiros buscando companhia.
Falam eloquentes e articulados as gravatas o os ternos bem cortados. Palavras de
mercúrio e neon atravessam as paredes transparentes da persuasão. As meias
palavras, os meios-termos, os subtextos são manobrados e
bordados em outra configuração: Há nesse templo uma mentira de
beleza absoluta aos que sempre sonharam um dia serem lindos e
perfeitos.
A grande massa embevecida, absorta, mandíbulas
contraídas e o desejo frenético de acreditar no que não pode ser.
As pessoas se apoiam na covardia do impossível para se manterem
prostradas na prerrogativa do impraticável. Afinal, comodismo e
resignação ajudam a explicar a paciência. Ignoram o debate negociado das dúvidas para justificar seus pretensos estágios de superioridade.
Um amontoado de opiniões, distribuídas ao longo de incontáveis poltronas vermelhas,
fincadas no piso de madeira riscado por tantos sapatos e
verdades distintas. Ressoam internamente novos conceitos do amor, boas
intenções e ilusões prolongadas nas decepções. Protesto: O amor ilimitado só
existe associado a outros interesses. As boas intenções (aquelas
puras e espontâneas) são uma farsa; apenas disfarçam um duelo sutil entre a admiração, a conquista e o medo de perder.
Como um explosivo de pavio curto, não dispenso nem desperdiço tempo na espera das ilusões serem detonadas. Esses doces enganos que exímios defensores protegem aos berros, só examinam brechas para serem cometidos de novo.
Sim, faz de conta que eu acredito.
quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015
Castelo de areia
Séculos atrás, um casal da nobreza foi sitiado num
castelo e exposto à maldição do tempo. Transitam nos aposentos seus espectros
cinzentos, sem alma, pela cova profunda das incongruências.
Errantes, navegam desnorteados sem uma bússola de orientação. Sem
herdeiros ou testemunhas não têm com quem compartilharem seus
argumentos. Entre moedas de ouro e um brasão arrogante destilam com
pompa e circunstância as tradições, que agora nada valem. Vivem há
séculos numa rotina de pausa. A imortalidade faz parte da pena.
Congelados, semblantes impassíveis. O tempo parado. Nenhuma
transformação à vista, nenhum desgaste dos dias.
Pontualmente às 12:07h., o relógio foi travado. À partir dali nada se move. Nenhum espécime se modifica ou muda de lugar. Enquanto aparatos tecnológicos deveriam disparar nos arredores, só galhos secos e solo trincado pelo sol compõem aquela paisagem. Sem contratempos, todas as circunstâncias são previstas. Com a ausência da imperfeição, o tempo se mostra apenas como coadjuvante.
Pontualmente às 12:07h., o relógio foi travado. À partir dali nada se move. Nenhum espécime se modifica ou muda de lugar. Enquanto aparatos tecnológicos deveriam disparar nos arredores, só galhos secos e solo trincado pelo sol compõem aquela paisagem. Sem contratempos, todas as circunstâncias são previstas. Com a ausência da imperfeição, o tempo se mostra apenas como coadjuvante.
Entre talheres de prata, louças de porcelana,
cálices de cristal, candelabros de bronze, lençóis de seda,
resiste a “eficácia” de operários robotizados. Falta entre as
paredes frias, as sensações de finitude. As possibilidades de nascer
e as definições de morrer. A simples ideia de ruptura do ciclo da
vida, balança as estruturas frágeis desse suntuoso castelo,
habitado por duas figuras de cera.
Bom seria se nessa quietude tediosa, se
infiltrasse um ponteiro rebelde, que desafiasse essa pasmaceira
linear. Uma mínima vibração que indiciasse pelo menos o resgate da
culpa e das tão necessárias incertezas.
sexta-feira, 30 de janeiro de 2015
Hipocrisia velada
À cabeceira da mesa, um homem compenetrado nas
notícias de um jornal sujo de sangue e ameaçado sob a violenta
calibragem da segurança. Sob os óculos quase míopes, a barba
desbotada e alguns fios cinzentos a tingir um cavanhaque rigorosamente
desenhado pela navalha do capitalismo. Emoldurando a ossatura pouco
desenvolvida, o sorriso facetado pela abundância da escassez.
Desponta presunçosa, entre uma fileira de botões sufocados a
silhueta proeminente de uma barriguinha ainda com ares recatados. Com
um simples gole de pressa, parte em busca de mais um resgate nas suas
finanças.
Ziguezagueando ofegante, uma mulher aflita,
funcionalmente consumida entre pães, manteiga e o amante que acabara
de manter sob sigilo momentos atrás. Enquanto seu tédio enfiado na
medíocre religião da rotina sofre abalos, filhos vorazes disputam às
tapas a atenção. Na tentativa desesperada de convencer as
aparências permanecerem entre eles, faz de conta que é feliz e que
a normalidade convive no mamão e iogurte com granola.
Uma garota manchada de batom e maquiagem pesada,
mexe insistentemente nas mensagens de um potente celular de última
geração. Patrocinada aos exageros de grifes, ostenta aos quatro
cantos da mesa suas inúteis futilidades. Astuta, ares de profunda
inocência. Beneficia-se do seu corpo supostamente intacto, para
seduzir incautos e vazios consumidores de si mesmos. Não é pelo
dinheiro que entrega o corpo, mas por um desejo estranho de poder.
Pela satisfação esquisita de ver a submissão ajoelhar-se aos seus
pés.
Um adolescente solitário, ríspido, ácido,
interpõe-se entre a carência e a inteligência que pulsa. Ao invés
dos jogos inocentes no vídeo game, traça estratégias de guerra,
arquiteta ações quase terroristas. Brinca com fogo e faz-se refém.
Invariavelmente, perde o apetite diante daquele cenário falso,
montado, ridículo, onde a ausência de diálogo ocupa um espaço de
destaque na mesa. Se afasta truculento e busca refúgio no seu
isolamento real. Reencontra-se com pensamentos suicidas e todas as angústias representadas num simples café da manhã.
quinta-feira, 29 de janeiro de 2015
Linhas simétricas
A cena seguinte seria numa casa de vidro, rodeada
por imensos pinheiros, aclimatada pelos sopros do sol, refletida por
vastos personagens. Amplos em virtudes e deformidades. Alguns deles
hiperativos e canhotos. Sem contar os rebeldes assimétricos, fora do
padrão... Gorduchos, tatuados, cabelos coloridos, fumantes, adeptos
do sedentarismo, contestadores, desafiadores do sistema. Entre “os
desertores”, os esteticamente irretocáveis, as linhas perfeitas e
as formas em harmonia. Juntos, dão forma à democracia. Não andam
em círculos porque têm objetivos. As metas propostas são
incompatíveis com a perda de tempo. Alinhados aos fundamentos da beleza, protagonizam o espetáculo em formas geométricas.
Sejam retas e decididas, ovais e flexíveis,
arredondadas e atraentes, imperfeitas e naturais, côncavas e
convexas, sinuosas e sedutoras, pontilhadas de intervalos e
interrupções...
Ainda assim, poderão ser simétricas.
quarta-feira, 21 de janeiro de 2015
Tudo off
À minha porta ergue-se do nada uma lojinha de
souvenirs com valores tentadores. Entro e vasculho coisas de
diferentes tamanhos, cores variadas. Em súbita aterrissagem ao solo
firme da racionalidade, percebo que estou cedendo aos apelos do
consumo. Imbecilmente, seduzido por coisinhas frágeis, de plástico, e sinceramente sem utilidade. Mulheres se acotovelando,
carregadas de sacolas e o cartão estourando na carteira. Um sorriso
obsessivo de satisfação se enfia na estratégia do comércio fácil.
Com os preços hiperinflacionados dos bens
duráveis, ao invés de um veículo ou apartamento, melhor investir à
preço de banana na compra de um corpo. Na vitrine dispõem-se a
satisfação instantânea. De brinde, ganha-se a falsa impressão da
performance invejável. Em tempos de banalizações, comercializar
emoções é um mero detalhe. Vaidade inflada por quase nada.
As informações, pode-se manipulá-las, montá-las,
entregá-las à especulação, torná-las rentáveis
sob a visão de um mercenário. Espiões à espreita, ouvidos colados
à porta prontos a disseminarem suas versões. Sons vigorosos são
alardeados ao microfone em praça pública, conclamando a conivência em liquidação da oferta e procura. “Quem dá mais” reina supremo
nesse leilão controverso da superficialidade.
Por motivos fúteis mata-se, rouba-se, pratica-se
corrupção e às gargalhadas tripudia-se da impunidade.
Às avessas, ironicamente tudo é negociável.
domingo, 18 de janeiro de 2015
Dissecando detalhes
E então, sobressaltada com os pesadelos que avançara sobre os sentidos, desperta e passa o restante do dia recordando os detalhes.
Lembra vagamente de uma chuva tamborilando contra
o teto, o céu negro em veludo preto e as vidraças rabiscadas em água
ainda moderada. Embalada à vácuo, deitada e afogada numa poça de cabelos, um animal ferido, tentando romper as barreiras intransponíveis das metáforas.
Perdida numa floresta negra, entre árvores densas presencia uma clareira aberta pelo fogo, que a carbonizara num raio indefinido. A nuvem de chumbo da fumaça turvam as circunstâncias. Castiga os pulmões, querendo derretê-los. Em asfixia, se debate em busca de ar.
Perdida numa floresta negra, entre árvores densas presencia uma clareira aberta pelo fogo, que a carbonizara num raio indefinido. A nuvem de chumbo da fumaça turvam as circunstâncias. Castiga os pulmões, querendo derretê-los. Em asfixia, se debate em busca de ar.
Sob os pés, a textura das pegadas de cinzas. Os
troncos fumegantes exalando junto de uma fumaça indiscreta, um
emaranhado na consciência.
Se aproxima um homem de fisionomia esgotada,
sorriso predador, olhos fulminantes e intimidadores. Lábios largos e
incompatíveis às formas da boca. Cabelos confusos, desgrenhados,
assimetricamente distribuídos. Uma cicatriz evidente no braço esquerdo,
resultado de um corte antigo nas suas funções de lavrador. As
linhas delineando e mapeando os traços do seu rosto, estabelecendo
nos sulcos da face e na vulnerabilidade dos seus olhos o desenho da
sua idade.
Recorda dos olhos traçando as paredes, calculando cada imperfeição da pintura, dos reflexos de uma luz que quase morre nos cantos do quarto, dos solavancos da memória que aterrissam nos seus lençóis.
Recorda dos olhos traçando as paredes, calculando cada imperfeição da pintura, dos reflexos de uma luz que quase morre nos cantos do quarto, dos solavancos da memória que aterrissam nos seus lençóis.
Intrigada, é assediada constantemente na sensação
de não ter dormido.
Ao final só os detalhes sobreviverão.
sexta-feira, 16 de janeiro de 2015
Linha do tempo
Após um suspiro, deixam escapar num quase
lamento... “Ah... No meu tempo!".
Ora, qual o tempo referido?
Em represália a essa prece retrógrada, apresento
meu argumento: Razoavelmente pondero: Não existe esse tempo
requerido. O tempo passado pode servir apenas para amparar as
saudades. Se ele trouxe a tristeza das perdas em vários segmentos,
paradoxalmente ele concedeu credenciais para não voltar. O tempo
presente é o agora. Mesmo sob o jugo da morte, ainda assim restaria
o álibi do tempo, que embora não permita interrupção, guarda uma brecha onde pode-se trabalhar para mudar o destino da história. Esses conceitos reacionários surgem a partir de
uma incompetência em conviver com o inexorável. Não se pode
escapar ileso das transformações. Não se atravessa incólume às mutações impostas na cadência das horas. Há que se compreender a implacabilidade das rugas e o ônus das peças desgastadas. Mesmo que seja reinventando-se em outras possibilidades, em novas medidas e outras melancolias. Esse modelo antigo de busca às reminiscências só se sustenta com a adesão de voluntários à uma causa que o giro do relógio já proferiu a sentença.
Vamos ser atemporais! Acatar com dignidade o peso
do relógio. Combater a nostalgia do que não se pode recuperar.
Rasgar estatutos. Promover adendos no contrato previamente
sancionado, incorporar dispositivos que ressalvem o direito de rever.
quarta-feira, 14 de janeiro de 2015
Além do mar...
Esse cheiro incontestável que faz as asas abrirem, infla pulmões, esvoaça os cabelos e assenta o desejo de partir.
Esse breve intervalo entre a serra e a revoada de
gaivotas tremulando ao balanço do vento.
Esse insondável mistério das marés incansáveis,
investigando as rochas, penetrando as rachaduras das pedras,
insinuando-se em ondas sua sensualidade que só é interrompida na areia da
praia. Nos avanços e recuos intermitentes impõe suas ingênuas intenções.
Essas nuvens elásticas se moldando a todo
instante em leves figuras, brincando saltitantes de esconde-esconde,
fundindo-se às outras sem cerimônia. Capuchos soltos no ar, se
divertindo na criação de formas indecifráveis.
Esse sorriso narcisista, escondendo sua metade
selvagem, sua parte sarcástica. Essa mistura de sal e água de coco que recobre a pele tostada e o transpirar da liberdade.
Essa tela que rasga os padrões de tudo já foi
visto antes, que separa o dia da noite com simples pinceladas de
perfeição.
Esse sol esbanjado na palma da mão, no topo das idéias,
mesclando de cores o oceano entre safiras azuis, amarelos dourados e
verdes esmeraldas. Protegido pelas paredes do oceano, só os grãos
insolúveis de sal e do tempo que não pode esperar.
Esses coqueiros inclinados sobre as águas que parecem
suplicar por matar a sede. O cheiro de maresia, sabores gelados, pombos que vagueiam incansáveis revirando a areia e a curiosidade.
Essa navalha contra o ego, que sem esforço habita o imaginário coletivo de quem espicha os olhos além do horizonte.
Entre goles, conchas e pranchas me reconheço num caiçara.
Assinar:
Postagens (Atom)