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segunda-feira, 23 de maio de 2016

A origem


Numa profusão de gametas, rompe furioso membranas emaranhadas e estabelece-se no seu trono em companhia adjacentes de neurônios, hormônios, sinapses e elasticidade cerebral.

Nasceu. Relutou. Em alguns momentos esperneou, aplicou pontapés. Finalmente cedeu. Sem escolhas, o tempo de maturação se esgotou. Fazer o quê? O homem de branco pareceu tascar-lhe uma palmada burocrática e o nascido berrou. Primeiro teste para os pulmões. Inflou-os e não economizou. Não teve vergonha de se esgoelar. Contrário àquele ambiente frio, apresentava seu derradeiro manifesto através da sua garganta, que por nada seria calada - Apregoam por aí que os bebês choram convulsivamente por que o submetem à perda direta da mãe. Acostumou-se desde cedo a navegar preso a um cordão. Não seria nada fácil a adaptação ao novo ambiente. O pequeno limitou-se a observar e absorver o novo mundo. Estranhamente, uma moça atrevida tateou-lhe o peito e checou suas articulações. Num exame quase fremente, ousou revelar sua identidade através de um carimbo no pé. Abriu preguiçosamente os olhos ainda opacos. Fitou indeciso as imagens distorcidas daquele objeto luminoso, que agredia sua pele sem vincos. Tentou compreender as lágrimas da sua mãe e o sofrimento do seu pai, abraçado aos joelhos, como se tivesse superando uma crise de náuseas. Uma maca e um vidro grosso o separam de pensamentos pastosos e inconstantes. Era, naquele instante, apenas um embrulho. Movimentava-se com dificuldade, como se estivesse sendo constantemente puxado por uma infinidade de pegajosos fios espessos. Outrora imerso numa substância morna similar ao magma, fora submetido a um planeta de criaturas tortas, assustadoras. Um sorriso tímido invadiu suas feições recém expulsas do invólucro protetor. A substância evocou as memórias marcantes de sua vida anterior: O útero. Nostálgico, Vinham-lhe como profecias em cada rosto, o gosto dos primeiros passos, o sabor de cada tombo desastrado. Tão rápido quanto o pequeno fora expelido de sua dedicada mãe, o tempo dissolveu-se, volveu em visão turva, percepção, câmeras, flashes e lembrancinhas. Chorou novamente. Queria voltar! Sabia que havia sido real, um real líquido que escapava por entre os dedos, mas real. Não queria este mundo tão palpável e raso. Cobiçava voltar a nadar. Se possível, a seu tempo, aprender a voar.
O nascido nunca mais voltou ao refúgio uterino. Não havia mais espaço para contestar. O destino vencera.

Começou a morrer no momento em que nasceu.

                           
                           

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Perspectiva ampliada


 Antológico distender impressões, antes tão curtas, dos aspectos tão escrupulosos de Bruna...

Escurecia. Início de um rigoroso inverno. Logo a noite estaria cerrada. Sentados ao lado de duas janelas grandes de vidro, olhavam a chuva torrencial que castigava sem dó as vidraças. Bem que o contexto poderia sugerir uma chuva suave, onde poderiam seguir as gotas com os dedos. Seria muito mais romântico! Quem sabe uma neblina fina, com uma lareira ao fundo... À revelia, não se sucedia exatamente assim... Bruna, exercia ali toda a frieza milimetricamente calculada há anos. Garota de programa, morena, lábios selvagens, exalando sensualidade. Da carne à alma, era pura tentação. Tamanhos seus atributos de beleza, era amplamente requisitada. Sem nenhuma espécie de constrangimento, sentia-se inteiramente ressalvada pela sinceridade que articulava sem rodeios. Refutava qualquer indício de intimidade que pudesse configurar envolvimento. Segundo ela, beijo na boca envolve língua e, por conseguinte, privacidade. Sexo desprotegido suscita contato direto e ilimitado entre peles. Sua independência não admite tais exceções. Do alto da sua perspicácia, havia compreendido que todo corpo nu torna-se presa fácil.

Chegou em boa hora um café que fumegava ante os vasos sanguíneos contraídos e asfixiados pela falta de oxigênio. Agarravam-se às xícaras como a defender territórios. Bruna, erguia barricadas em torno das suas convicções. O afoito estrangeiro a aceirava com ares diabólicos. Tentava dissuadi-la do seu aparente desprezo. Experimentada, plenamente afeita às multiplicidades, algo soprava-lhe aos ouvidos para não fixar os olhos em quem a cobiçava. Havia um risco claro que a condição que há tempos adotara, pudesse sofrer abalos. Compreendia a gama de pareceres delicados: De um lado a controversa polêmica entre a ética e os valores. Paralelamente, a farsa e a dissimulação da normalidade. Considerava inadmissível todo juízo de valor que certamente lhe seria imputada. Somente ela tinha conhecimento de onde apertavam-lhe os calos. Era indubitavelmente um produto em exposição. Contrapondo-se, há que se mensurar a insatisfação daqueles que a procuram. Usava sim à exaustão, todas as peculiaridades que a natureza generosamente a concederam. Não causava-lhe embaraço comercializar o corpo. Pesava-lhe tão somente o delito de cunho social e convenhamos, hipócrita.

O espaço que dividiam era mínimo, o que exigia que ambos se contraíssem no encosto das cadeiras. Distraídos nos caminhos da fumaça que libertavam pela boca, entre uma frase e outra. Fez-se de repente um silêncio retumbante, daqueles que coagem até o piscar de olhos. Aquela fenda precisava ser encerrada, para que outros encontros pudessem se desenvolver.

Haja o que houver, sempre haverá alguém querendo puxar "à força" uma companhia para mais um café.

                          
                                 
                                

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Metáfora


Aquele estranho som do aço raspando o couro endurecido. A lâmina delgada é projetada lentamente no ar, brilhando preguiçosamente quando erguida da bainha, contendo sua fúria. Movimentos simples e rústicos feitos pelos pés descalços e sujos, nem imaginariam serem acompanhados pela ponta afiada, sibilando baixinho, enquanto corta seu caminho pelo ar morno do final de tarde. Aqui e acolá, vai dançando sem pressa, sem pensar, deixando apenas a canção do aço embalá-la. Cada golpe preciso e toda estocada, firme. A espada já não mais treme quando deixada na horizontal, e logo depois de um bote certeiro. Ela até agradece a forma carinhosa com que é manejada, desferindo cortes, arranhões e dor por onde passa. Escrevinha olhares oblíquos e traiçoeiros nos punhos cerrados.  Esquiva-se, escorrega com elegância das tocaias. Safa-se enfim! Algumas vezes sucumbe. É natural. Desconheço àquele que sai ileso de todas. Destemida, continua seus passos intermináveis. Tudo o que lhe resta quando se acalma, são os gemidos e coisas de quem um dia foi dançarino. A vida, na sua complexidade garantida, exige uma coreografia de peito na boca. Intensa, extrema e inteira. Exatamente como ela. Reinventa-se, se refaz, enquanto limpa a lâmina cuidadosamente num trapo que encontra ali perto. Acompanhando toda essa senda, um Deus ou Mestre de Danças, parado e olhando tudo com cuidado: Desde os populares bailes de carnavais aos sofisticados recitais de óperas. A fé e as convicções, sejam elas dogmáticas ou tolerantes determinam no que acreditar. Desistir ou persistir? Eis o dilema! Cansada e suja, mas não morta! Ignora todo aquele sangue secando em sua pele. Suporta os pequenos ferimentos que ardem, os músculos que reclamam como se os contorcessem. Ela observa um homem à sua frente, desembainhando a espada, desviando dos corpos estendidos no chão. Simbolizados, amontoados de fracassos, decepções e perdas irrecuperáveis. Em algum lugar, a mulher volta a cantar sob o som do beijo do aço, ecoando nas vielas estreitas. Nada a fará declinar da sua dança. Contrária aos olhares estáticos, fotográficos, atraí-lhe a ideia de ser impelida a atingir os seus sonhos mais profundos. Refuta integralmente a concepção de transformar-se num simples produto póstumo dos homens: A incerteza.


                               

segunda-feira, 28 de março de 2016

Voz de um violino



Lentamente arrumara os cabelos. Com um chumaço de algodão, retirara das pálpebras o excesso de insônia e cansaço. Apreciara, como de costume a quase síndrome de narciso, que eventualmente a assediava. Tudo sob a luz tênue que lambia de leve o espelho. Os olhos felinos percorreriam sem pressa, de cima abaixo, cada milímetro do seu corpo. Na janela entreaberta o balé frenético das cortinas. Tudo tão perfeito, tão adequado, tão confortável! A não ser pelo detalhe do hematoma que sombreava-lhe o peito. Sentara na cama e observara em silêncio aquele ingresso para um concerto de violino. Sentira com prazer, aproximar-se o encontro mágico entre o som e a poesia. E de quebra, teria acesso a bons momentos ao lado de excelente companhia. Sorrira com lábios indomáveis até o telefone emitir um estridente chamado. Aquele objeto sacudira-se em desespero, suplicando ser atendido. Queria, ou melhor, exigia-lhe atenção! Tomada de um gesto reflexo apoderara-se do aparelho aflito e o aplacaria antes de voltá-lo ao gancho. Ainda exultante, comemorara consigo a ratificação do compromisso para logo mais à noite. Sem muito calcular, escolhera um vestido cinza, ajustara-o em seu corpo em boa forma. Sobre o vestido sóbrio, incorporara-lhe um casaco negro que alcançava-lhe fácil as panturrilhas. Após uma borrifada do seu perfume preferido, aspergira uma atmosfera autentica de personalidade. Flagrara-se sobraçada a uma caixa marmorizada, recheada de história: Bilhetes, lembranças, datas, fatos e fotos. Surpreendera-se com o prontuário que o tempo lhe concedera. Naqueles dados, estavam implícitos expectativas - Por mais que busque-se omitir, ninguém faz nada sem interesse. No caso dela, queria respostas ao som do violino. Estava tudo planejado. Saberia se valeria a pena investir. Fizera uma longa viagem imaginária antes de deslocar os pés de bailarina para fora do chinelo. Sapatos de veludo pretos foram colocados e os saltos altos e finos confeririam-lhe um ar altivo e sedutor. O coração ansioso galopara. O relógio martelara do outro lado do quarto. Parecia satirizar sobre sua impaciência. Pontualmente cravado. Eram 22 horas.  O compromisso dar-se-ia às 23 horas. Com o violino amparado no ombro, o músico de olhos fechados abriu o espetáculo. De imediato, imaginara-se em consonância com uma dança leve, onde os passos puxavam as notas. As mãos definiriam uma troca de poderes, onde cada uma procuraria o comando. Numa mistura de cheiros, toques, melodias e outras sensações, faltaria os lençóis serem consultados. 

                  
                                 

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Tarde no cais


Final da tarde, sentado à beira do cais, as pernas em pêndulo, pés riscando a água e provocando oscilações no mar e nos pensamentos. Nuvens esfomeadas flutuam, parecendo engolir umas às outras, num balé extravagante. Outras, se movimentam displicentes. Chocam-se entre si sem o menor senso de direção. Aqui e acolá, insetos abusados ensaiam ataques, logo abafados pelo rufar das asas de uma imponente borboleta.

Avisto um solitário pivete, franzino, cabelos espetados e tostados, metido numa embarcação improvisada de toras, barbantes, tecidos brancos rasgados e muita criatividade. Ignorando os imprevistos da travessia concentra-se no seu objetivo decisivo desde as fraldas: Navegar os sete mares com a desenvoltura de um veterano. Determinado, decifraria os rumos escondidos nos mistérios das correntes. Sentia-lhe respingar na testa e no peito pingos d'água e orgulho. Era-lhe notável a ambição pelo status de lobo do mar. Revoltava-lhe não ter nascido nos tempos de piratas. Não ter partilhado das caças ao tesouro. Eram-lhe pertinentes assuntos de Moby Dick, Barba ruiva, navios fantasmas e outras maresias.

Imaginava-se rompendo furiosas tempestades, singrando fácil as veredas das águas, transpassando a potência dos ventos. As intempéries naturais não conseguiriam demovê-lo sob hipótese nenhuma do  que o farol anunciava: Sensação de liberdade. Era bonito de se ver, um pequeno ponto aventureiro, convencido soberbamente ser um marinheiro escolado, aguentando o balanço, soltando as amarras. Único tripulante de uma embarcação sem rotas ou mapas. Seu destino não tinha inscrição, tamanho ou alcance. Não cabia-se nas simbologias do  alvo lenço das velas.

Da proa, sonhava alto. Em terra firme ou em mar grosso. De moleque topetudo à marujo coroa. No convés, um coquetel de batéis desarvorados, promessas em suspenso e destinos insólitos.

Cada um tem seus faróis. Aquele era o seu. Dele, não abriria mão.

                         
                                 

sábado, 7 de novembro de 2015

Batalha de egos


Sentada junto ao exílio dos seus pensamentos, imersa em si mesma. Alheia a qualquer espécie de apelo externo, com as pernas entrelaçadas e o celular pousado no colo (como a  proteger um frágil bebê) Ah, o cigarro! Não podia faltar-lhe o adereço. Movia-o entre os dedos, ainda apagado. Sensualmente, fazia malabares em giros transversais sem qualquer sincronismo estabelecido. Queria a reclusão de estar só. Nenhuma aproximação fazia-se interessante. Tinhas um olhar longínquo, perdido, solitário. Fez-me arrepiar da cabeça aos pés ao sorrir para um garçom e sussurrar com uma voz rouca, abafada:

 - Por favor, o menu!

Seu semblante esforçava-se para não transparecer emoção. Eu, de um saber cá de dentro, conhecia que intimamente ocultava até de si mesma, as angústias que a cercavam e teimavam em roçar-lhe as orelhas. Deveras impertinente, o acaso zombava da sua aparente serenidade. Queria ver o circo pegar fogo!

Avassaladoramente, fui atraído por aquela força distraída. Quando todos os holofotes justamente se voltavam para ela, mantinha-se absorta com guardanapos.

Aproximei-me com cuidado, driblando vagarosamente mesas e obstáculos, não perdendo de vista o objetivo. Não queria de nenhuma maneira sobressaltar-lhe. Num ímpeto reflexo, instintivamente viraste o rosto na minha direção. Com um sorriso pela metade, pouco sincero, procurastes desestimular minha ousadia. Sua postura ostensiva e inflexível abatia qualquer esboço de cantada.

Antes que pudesse antecipar-se, lancei-me rápido e tentei embaraçar-lhe:

- Posso ajudar a arrastar a mala?

Secamente, sem levantar os olhos, devolveu:

- Posso saber do que está falando?

Prossegui:

- Não sou halterofilista, mas pensei que poderia atenuar o peso que carregas nos ombros.

Fui incisivamente interrompido:

- Não me venha com psicologia de botequim!

Retruquei-lhe veemente!

- Não me interprete como uma ameaça! Meu intuito é conhecer além (bem além) de uma garota interessante. O propósito da aproximação não envolve provocar tua fúria. Insultar-lhe assim de graça me faria um sujeito idiota, estúpido.

Ela pareceu derreter a armadura...

- Desculpe! Não quis ser grossa!

Arrematei:

- Vou deixá-la à vontade. Sei reconhecer quando estou sendo inconveniente.

Ao virar-lhe as contas, senti as súplicas atingir-me a nuca:

- Mas... e o seu nome?

- Senta aqui! Vou abrir o jogo! Momentos atrás, suspeito que tenha perdido o grande e único amor da minha vida. Um abraço era tudo que eu precisava.


                                 

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Engano



Paul, arrogante e irascível, buscava alguma orientação que pudesse desanuviar-lhe as tormentas. Como um inseto girando em torno da lâmpada, rastreava indícios de equilíbrio. Suficiente, do couro cabeludo à ponta do pé, era-lhe inadmissível ver sua estrutura esfarelando diante de uma emoção desconhecida que o contrariava. Sentimento, na sua ótica, resumia-se em tudo que pudesse conduzir. Fugindo disso, era estupidez.

Apoiara as mãos no mogno e olhara de soslaio no espelho. Desconfiado, suspeitara que estava deixando escapar sua estabilidade. Como presumia, o reflexo que o enfrentara, estranhamente não parecia-lhe familiar. Olheiras gigantescas circundavam qualquer prenúncio de horizonte. Sentira as costas contraírem-se, os músculos retesarem-se, os punhos cerrarem-se. A garganta fora tomada por severa aridez. Aquele corpo tão supostamente perfeito, parecia impreciso. O deserto demandava um oásis. Precisava desesperadamente de água. Talvez, se umedecesse as engrenagens pudesse trazer à tona algum resquício de sanidade.

Dirigira-se à mesinha de cabeceira e apanhara um copo. Num ímpeto, imaginou estilhaçando-o contra a parede. Como se o simples ato de estatelar aquele objeto contra uma superfície sólida, por si só, restabelecesse sua autoridade. Todo o corpo tremia. Sempre esteve no comando. Pela primeira vez sentia-se em segundo plano. Com sede, bebera. Sentira um sabor amargo. Aspectos ásperos sabotaram seu paladar.

O desequilíbrio alcançara a exaustão extrema, obrigando-o a deixar-se vencer e pousar um joelho ao chão. Por um ciúme selvagem perdera sua capacidade lógica de raciocínio. O diafragma contraíra-se violentamente, causando uma dor insuportavelmente inexplicável. Acabara de compreender o motivo das loucuras serem cometidas, quando o controle das percepções são perdidas. Percebera em definitivo, não haver isenção para aquele que decide ser absoluto.

Repentinamente sentira algo úmido cair-lhe na mão. A última coisa que queria era admitir-se fraco. Chorar representava o ápice da fragilidade. Esbarrara na prova inequívoca do farrapo que se tornara. Prometera-se desde muito cedo a não fraquejar. Chorar parecia-lhe outorgar o fracasso. Inicialmente tentou se convencer que aquilo não era exatamente uma lágrima. Poderia até ser uma gota salgada que o olho vertera. Por uma série de razões, menos por amor. Sentira-se próximo da infantilidade. O choro arrancara-lhe com violência o curativo. Fazia-lhe vulnerável. Gostaria de esconder-se de si mesmo, mas o espelho delator dava-lhe a visão plena do seu estado.

Triste constatação: Os homens, na sua arrogância e falta e humildade deixam-se arrastar calados no seu ínfimo tamanho. Enganam-se ao não se mostrarem. Quando covardemente, não se expõem às oportunidades de dividir.  

                       
                               

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Pela janela


Era começo da tarde... Andares abaixo, trafegavam carros apressados e buzinas abafadas por sirenes em estado de emergência. Pela janela, observava um grupo de meninas com meias brancas galgando os joelhos. Algumas de cabelos lisos, cortados ao meio. Outras de madeixas estiradas, quando não aprisionadas por presilhas curtas, amarelas, verdes e vermelhas. Haviam ainda as adeptas dos cacheados, tingidos e de franjas ocultando a testa e suavizando rostos, supostamente de dimensões desagradáveis. Entre elas notabilizava-se uma aparição que saltitava feliz em amplitude compatível à longitude das suas pernas. Com seus aparentes dezessete anos, formação óssea incompleta, escapavam-lhe imperfeições que tornavam-na a mais bela e atraente de todas. Destacava-se como um monumento naquela associação de diferenças. Raios de sol lançados na vertical acentuavam o tom alaranjado que lhe nomeava de ruiva. O calor da energia que aleatoriamente empregavam fazia surgir-lhe nas têmporas, gotículas de suor que deslizavam sobre suas faces. Em especial, no salpicado de sardas que habitava a minha escolhida. Sua estatura extravagante lhe conferia um ar desengonçado que chamava a atenção. Os ombros desalinhados comprovava a desajeitada figura que me arrebatara. Aquela estrutura grande, de dimensões incomuns, parecia desconfortável, com dificuldade de espaço para se posicionar. Braços longos ensaiavam estabanados movimentos largos. Curvava-se sobre uma pasta preta, numa mistura displicente de cuidado com demasia. Comecei a contemplar a beleza que não precisava ser chancelada pela plateia. Como eram intensas nas simples sutilezas de se equilibrarem no meio-fio! Passeavam em ordem sem imaginar que de longe eram observadas. Estava ali a classificação genuína da sensualidade sem pose. Atento, sob aquela tarde ociosa, ajustava antenas analíticas no encalço gracioso, que aquele conjunto juvenil despertara. Não eram os hormônios que borbulhavam ante aquele cenário (testosterona absolvida). Atrás daquela vidraça postava-se um homem comum, de meia idade. Surpreso exclusivamente, perante aquela frequência despretensiosa, que ingenuamente protagonizavam. Hipoteticamente anônimas, simplesmente giravam, se esbaldavam aos berros, se esbarravam em direções opostas ao alvo do destino: O colégio testemunhava de longe...

E eu também.

                            
                            

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Breve intervalo


Numa noite qualquer, despenca uma uma chuva torrencial com pingos grossos e tão violentos que mais parecem ácido. Combinação  perfeita para o humor que a despertara. Ela, semblante impassível, mantêm-se recostada no braço da poltrona. Estava farta de ser confundida com uma menina fútil e riquinha. Era rotulada de vazia e sem conteúdo. Equivocadamente, elaboram normas ridículas, baseadas em superficialidades. E para piorar, essa tempestade repentina ainda ameaçava seus planos de exterminar mais um cigarro. Por respeito aos irmãos, ainda crianças, evitava expô-los à fumaça assassina. Suas curvas esculturais, seus olhos azuis, cabelos lisos e curtos, deixavam a nuca à mostra. Existem na mulher partes de extrema sensualidade que quase nunca são notadas. As relações em geral sofrem naufrágios à medida que estímulos visuais são subvertidos pelas sensações. Sob um jeans justíssimo, via-se delinear os contornos do pecado. As formas insinuantes e voluptuosas da quase perfeição, que erroneamente intitulariam de objeto. Esgotaria-se até a última gota para não ser identificada como uma casca apresentável.  Convicta da sua supremacia como ser humano, restaria-lhe a trégua do silêncio. Cravada no dedo anelar esquerdo uma tribal em tinta preta. Um anel gigantesco de prata recobria o desenho, passando a impressão de uma aparência adequada aos olhos convencionais. Enquanto isso, o dilúvio perde força, torna-se moderado, a ponto de finalmente liberá-la. Em trote, alcançaria em dois tempos a padaria, próxima do seu destino de fuga habitual: A praça, que servia de desafogo a outros jovens e seus conflitos. Finalmente veria os pulmões livres para o hábito, que embora nocivo a colocava no rol dos “normais”. Atravessara a avenida como um raio. Infringira por certo, o limite de velocidade. Violara seguramente, regras de sinalização ao ignorar o farol e o significado de suas cores.

Um aroma forte e característico aspergindo detrás do balcão. Aqueles instantes de pausa proporcionam após o cigarro, a combinação exata do sabor inigualável que chamam de amargo estimulante. Absorta, observava uma máquina de café gemendo e apitando o término do longo processo. Atrás de uma portinhola ouvia-se um tilintar curto de moedas em troco. O atendente que tirara o café, trocaria a xícara de mãos, sentindo a temperatura exceder os 90o. O que certamente seria suficiente para derreter-lhe a pele e quase dissolvê-los os dedos.

Após o ritual do consumo quase afrodisíaco, entregaria-se ao silêncio resignado das próprias  explicações. Calar-se não significava consentir, nem admitir. Preferia a reclusão definitiva de estar certa. Isso lhe bastava. Em passadas contidas segue desviando-se das poças d'água. Em cerca de trinta minutos estaria em confronto direto com a realidade. Tudo não passaria de um simples intervalo. 

                         
                               



















sábado, 11 de julho de 2015

Recortes do tempo

 

A imponente lareira se exibia confortável em frente da mulher grávida. Com ternura, era-lhe peculiar o doce tom materno que a circundava. Embora os olhos amendoados chispassem às vezes, fagulhas fulminantes de antipatia. Alta, esguia, possessiva, acariciava o ventre volumoso em posição de proteção absoluta. A gestação em fase avançada se aproximava do final. A irritação e a ansiedade disparavam indícios claros da menina dando lugar à mulher. Segura, demonstrava desenvoltura com o peso extra que carregava. Mãos em fricção, pernas excitadas e um vapor condensado era eliminado pelos pulmões encolhidos. Partículas de água em suspensão eram lançadas por espirros. O inverno bravio simulava o gelo dos alpes. As janelas pareciam dançar com a ventania revolta que subitamente se manifestava do lado de fora. Um cachorro felpudo acompanhava freneticamente os passos de Jeff. Ambos brincavam de voltar das caçadas, dos mergulhos nas florestas mais escuras. Fingiam que nada seria modificado com a chegada do primogênito. Esforçavam-se para simular um cotidiano habitual.  Pobre Jeff! Jovem garoto com medo de crescer! Altura mediana, cabelos encaracolados, embrulhado numa malha grossa e um casaco forrado com lã de carneiro, o que lhe emprestava uma aparência bem mais atarracada, dado o enorme volume que a roupa lhe conferia. Sobre os cabelos anelados, uma boina típica dos senhores Portugueses. A gélida brisa que sitiava o imóvel, encobria a história feliz que irrompera sobre qualquer projeto de Sarah e Jeff. Encontraram-se ao acaso, numa situação avessa ao caminho dos apaixonados. Esbarraram-se por coincidências tolas, sem qualquer fato marcante. A não ser pela imediata repulsão que ambos sentiram. Sarah, parecia-lhe a imagem da presunção. Tinha um certo ar de autoridade que não suportava. Jamais toleraria qualquer esboço de arrogância. Como se detivesse todos os direitos adquiridos sobre a verdade. Enquanto Jeff parecia-lhe um ser simplório, sem metas, sem ambições. Definitivamente, estava decretado. Não se envolveriam. Estava fora de cogitação qualquer ilação de possibilidades. Aliás, não acreditavam mesmo nessas baboseiras de coraçõezinhos e suspiros diante do amor à primeira vista. Pareciam-lhe improvável que a atração surgisse assim... Selvagem, sem cheiro, sem pele, sem toque, sem tempo.  Não eram de todo céticos. Embora reticentes, não desdenhavam que algo os surpreendessem. O pragmatismo e  objetividade não lhes congelaram por dentro, nem robotizaram suas emoções.

Estabelece-se a partir daí estranhas conspirações, convergências esquisitas. Que ironia! Tiveram que reconsiderar seus conceitos acerca do destino. Ambos descobriram que existiam pensamentos exaustos que precisavam de um ponto para repousar. Encontraram entre eles as reservas que se buscam para serem completos. Contrapondo-se ao frio do inverno, o calor da nova família bastava.

                            
                               
                            


terça-feira, 16 de junho de 2015

Através do espelho


Um jovem esperto, pele escura e olhos separados por sobrancelhas arqueadas, lembrando as orelhas dos felinos em riste, desconfiadas, cautelosamente à espreita, prenunciando ataques partindo de todas as direções. Cabelos negros e arredios, nariz largo e narinas ávidas por mais oxigênio, pernas extremamente finas e longas; de tão livre, corre sempre contra o vento. As ideias fervilham sobre o sossego. Inspirações, criatividade, energia, arrematam seu desenho. Com desenvoltura, descobre maneiras de vencer o tédio e a monotonia de estar sempre só. Arremessa pedras num lago próximo, escolhidas pelas formas mais compatíveis às suas mãos. Moldar as incompatíveis não é uma tarefa impossível. Diverte-se observando o rumo que tomam as pedras que deslizam na superfície transparente daquele espelho, às vezes azul, outras misturadas de marrom. Embevecido, acompanha o movimento em espiral dos seixos, as ondulações da água que aparentam material plástico, recebendo o choque. 

Tem sonhos. Muitos deles duradouros. Alguns fadados ao impossível. Outros mais palpáveis e concretos. Recursos reduzidos enfraquecem suas ambições. Queria embarcar num avião que risca o céu, deixando rastros de fumaça e ilusões que se dissipam com o vento. Imagina-se rompendo fronteiras desconhecidas, a bordo de um balão nas cores vermelho e laranja. Do alto, supõe cenários fascinantes, panoramas em vários tons, contrapondo-se ao preto e branco da sua rotina.

Além da natureza não tê-lo favorecido com o abre portas da beleza física (atributos cultuados à exaustão) pelos padrões das primeiras impressões, a cor da pele sugeria uma inferioridade que feria, tal uma haste pontiaguda. Seria hipócrita se afirmasse que possuía familiaridade irrestrita com religiões. O mais próximo que chegara, foi quando visitou uma tenda de candomblé, em companhia da sua mãe, que o enchia os ouvidos: “Tem que acreditar em alguma coisa, menino!”. Admite que aquelas pessoas vestidas de branco, o cheiro doce característico das ervas, as danças e o coro que entoavam orações pela cura não o convenceram. Não vou julgá-lo, (nem poderia). Ambos temos dificuldade em compreender os caminhos e desígnios de Deus. 

Enojado das mesmas injustiças, das repetidas carências de oportunidades,  enxerga nos trilhos da via férrea a oportunidade de abreviar parte das suas angústias. O comboio certamente seria impiedoso (exatamente como queria). O cortaria em dois. Antes de qualquer coisa, pensa em deixar como herança um par de sapatos.

Afinal, não precisaria mais dele.

                                     

                             

                    

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A experiência



Numa viagem das mais intensas, a uma velocidade incalculável desembarco em outra civilização. Não interpreto o solo que piso. Desconheço o material que paira sobre as minhas indagações. Teletransportado em um objeto acolchoado, de formas irregulares e de características luminosas. Selecionado para um estudo estratégico da evolução terráquea e suas extremas ignorâncias. Meu cérebro composto por dois hemisférios iguais, dimensões uniformes, sinapses perfeitamente ordenadas. Nada distingue ou justifica o motivo da escolha. Existem fatores subjetivos que também desconheço. Num movimento lateral desloco o pescoço em direção a um balcão de madeira envelhecida e capturo entre as luzes vibrantes, um calendário com algarismos garrafais destacando o ano de 3010.

Portando um bloco como única munição contra uma probabilidade de memória corrompida, persisto no hábito irritante da anotação. Essa estranha mania de registrar o tempo e vasculhar os cadáveres e seus sintomas. Começo a me interessar por essa viagem insólita. Aos poucos vou compreendendo as veredas desse intrincada missão: Desenvolver diálogos compreensíveis com outras formas de vidas e a continuação das mesmas repetições. Humanos sendo estudados, as diversas facetas de uma mesma moeda. O bem e o mal em mutação, anjos e demônios se sofisticando... Entre nós, esbarram-se na calçada, no elevador, nas escadarias, na sala em frente à TV.

Sentado e restrito a uma cadeira rústica de carvalho, compatível com a modesta decoração do Estabelecimento, anoto, arrolo testemunhas invisíveis para o disparate. Um parágrafo em particular dessas anotações chama a atenção: Alienígenas cada vez mais se aproximam dos nossos costumes. Copiam emoções, aprendem a seduzir. Em segundos assumem aparências, brincam de ganhar. Entre simultâneas tentativas acendo um calmo cigarro, o que me proporciona tempo de sobra para contabilizar quantos miseráveis minutos perdera com o vício. Posiciono-me de forma a alcançar um ângulo confortável sem que os olhos sejam contaminados pelo sol furioso, que invade os cantos do sábio boteco. Através da superfície envidraçada escaneio o ambiente. Enquanto tento distraído, saborear o veneno gasoso que preenche meus pulmões. De um ímpeto sem precedentes, atiro aquele invólucro branco recheado de fumaça negra ao chão. Do lado, uma funcionária me fulmina com um olhar tão tóxico quanto o cigarro lançado ainda queimando aos pés do meu desleixo.

De repente a porta abre-se de par em par, fazendo surgir uma moça de pele branca, esboçando um sorriso insidioso, levemente irônico – Quase imperceptível. Gingando seus quadris entre as mesas, me interpela e definitivamente me convence, sem esforço algum. Começou a cair meu olhar em derrota. Envergonhado pelas intenções vulgares dos instintos que por vezes assumem o comando. As íris palpitavam ante aqueles imensos e profundos olhos verdes. Existem nessa mulher duas identidades escondidas: O anjo, a síntese da pureza, o paradigma do sofrimento calado. Em contrapartida, a presunção do demônio, a que transporta a sepultura dos vulneráveis...

Com a simples desculpa de haver conquistado o que queria, deixa escapar...

Algo mais?
 
Sonolento e ainda desorientado encontro-me finalmente materializado no ano de 2015.


                               

                            














segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Horizonte azul


Uma hora os créditos acabam. Falta paciência até para a tolerância. Fartam-se das mesmas caras, dos mesmos gestos, do mesmo tédio. Permitam-se a essas centelhas de ostensividades. Não se furtem dos direitos legítimos de divergir. Ser agradável sempre às vezes é previsível demais. Contrastando com esse despertar de cara amarrada, sisuda, acompanha irônica e livre uma massa azulada, se oferecendo inteira aos nossos limitados limites. Tão distante, tão inalcançável, tão exuberante nas suas aparições através dos milênios. Ressurge dia após dia majestoso, contrariando a acepção da palavra imutável. Anos a fio, embrulhado no mesmo uniforme. Renasce sempre otimista em zombaria aos insatisfeitos.

Eis que surge intrometido o final da tarde, vestindo confortavelmente um pijama. Além da contemplação das vívidas cores, oferece também a probabilidade vespertina dos bocejos de indiferença. O entardecer e a aproximação da noite tentam roubar a cena e estragar o espetáculo com tonalidades alaranjadas. Manchando a faixa ininterrupta de anil e buscando enfraquecer os contornos seguros e firmes da eternidade.

Interstícios, intervalos, dúvidas, competição acirrada no pódio. A natureza também produz batalha de egos. Nessa guerra não há vencedores. A disputa não se baseia no jogo de poder. Ambos se procuram, se complementam. Todos juntos, protagonistas e espectadores observamos e usufruímos dos privilégios das 24 horas.

Esse portal, aparentemente inviolável, além da função irrefutável da estética reivindica seu status de referência. Em especial aos que desconfiam da expressão: Ver para crer.


                     

                             


terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Sem dramas!


A tempestade deu uma trégua; ainda que momentânea... Assim funciona a desconfiança: Entre a pacífica segurança e os rompantes transtornados das suspeitas. Empilhados sobre lágrimas, as vítimas, as tragédias e a autocomiseração. Alegando depressão apela para o golpe baixo da chantagem emocional. Existem nesses eventos de isolamento, um certo nível de baixa autoestima, associado a uma necessidade de autoafirmação. É preciso chamar atenção. Fazer-se presente. Deprimente amar uma vítima negativa e artificialmente fragilizada.

Mulheres extremamente possessivas e ciumentas geralmente se doam em pelo menos 5% e cobram nada menos que 100%. Essa desproporcionalidade se reflete na fuga e completo desinteresse. Não é pela busca do veludo de outras peles. A monocromia exaustiva das crises é que estimulam a dicotomia de outras possibilidades. Busca-se acréscimos, aditivos, complementos.

Enganam-se as que assumem essa postura de sempre buscar a parte que falta. O ser humano, na sua perfeição é inteiro. A sensação de voo desajeitado, de ninho inacabado é apenas parte de um capricho criado para dividir com o outro a responsabilidade de ser feliz. A vida é muito maior que essas faíscas de dúvidas. Concordo que não fomos criados para viver em clausura. Precisamos compartilhar abraços, confiança, espaços. Nosso fôlego expande-se a outros ares que ultrapassam essa bolha escura onde não se avista um palmo além das obstinações. Ou do nariz.

Nos joelhos, as feridas diante do amor irracionalmente aprisionado. Pulsos marcados pela dor e desespero, diante da simples possibilidade de não mais possuir. O egoísmo de conservar a qualquer preço o controle. Manter entre as mãos o objeto da obsessão. A possessividade leva às suspeitas e a perda de si mesmo.

Ninguém está imune a olhar para o lado... E nesse olhar furtivo, corre-se o risco de enxergar-se capaz de ver o que não via.

                      

                             

                             

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Faz de conta


No plenário, o discurso efusivo do convencimento. No alto da plataforma vê-se sapatos espelhados e a sedução em forma de oração. Murmúrios escapam sorrateiros buscando companhia. Falam eloquentes e articulados as gravatas o os ternos bem cortados. Palavras de mercúrio e neon atravessam as paredes transparentes da persuasão. As meias palavras, os meios-termos, os subtextos são manobrados e bordados em outra configuração: Há nesse templo uma mentira de beleza absoluta aos que sempre sonharam um dia serem lindos e perfeitos.

A grande massa embevecida, absorta, mandíbulas contraídas e o desejo frenético de acreditar no que não pode ser. As pessoas se apoiam na covardia do impossível para se manterem prostradas na prerrogativa do impraticável. Afinal, comodismo e resignação ajudam a explicar a paciência. Ignoram o debate negociado das dúvidas para justificar seus pretensos estágios de superioridade.

Um amontoado de opiniões, distribuídas ao longo de incontáveis poltronas vermelhas, fincadas no piso de madeira riscado por tantos sapatos e verdades distintas. Ressoam internamente novos conceitos do amor, boas intenções e ilusões prolongadas nas decepções. Protesto: O amor ilimitado só existe associado a outros interesses. As boas intenções (aquelas puras e espontâneas) são uma farsa; apenas disfarçam um duelo sutil entre a admiração, a conquista e o medo de perder.

Como um explosivo de pavio curto, não dispenso nem desperdiço tempo na espera das ilusões serem detonadas. Esses doces enganos que exímios defensores protegem aos berros, só examinam brechas para serem cometidos de novo.

Sim, faz de conta que eu acredito.

                             

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Castelo de areia


Séculos atrás, um casal da nobreza foi sitiado num castelo e exposto à maldição do tempo. Transitam nos aposentos seus espectros cinzentos, sem alma, pela cova profunda das incongruências. Errantes, navegam desnorteados sem uma bússola de orientação. Sem herdeiros ou testemunhas não têm com quem compartilharem seus argumentos. Entre moedas de ouro e um brasão arrogante destilam com pompa e circunstância as tradições, que agora nada valem. Vivem há séculos numa rotina de pausa. A imortalidade faz parte da pena. Congelados, semblantes impassíveis. O tempo parado. Nenhuma transformação à vista, nenhum desgaste dos dias.

Pontualmente às 12:07h., o relógio foi travado. À partir dali nada se move. Nenhum espécime se modifica ou muda de lugar. Enquanto aparatos tecnológicos deveriam disparar nos arredores, só galhos secos e solo trincado pelo sol compõem aquela paisagem. Sem contratempos, todas as circunstâncias são previstas. Com a ausência da imperfeição, o tempo se mostra apenas como coadjuvante.   

Entre talheres de prata, louças de porcelana, cálices de cristal, candelabros de bronze, lençóis de seda, resiste a “eficácia” de operários robotizados. Falta entre as paredes frias, as sensações de finitude. As possibilidades de nascer e as definições de morrer. A simples ideia de ruptura do ciclo da vida, balança as estruturas frágeis desse suntuoso castelo, habitado por duas figuras de cera.

Bom seria se nessa quietude tediosa, se infiltrasse um ponteiro rebelde, que desafiasse essa pasmaceira linear. Uma mínima vibração que indiciasse pelo menos o resgate da culpa e das tão necessárias incertezas. 

                                                            
                                    
                                     

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Hipocrisia velada


À cabeceira da mesa, um homem compenetrado nas notícias de um jornal sujo de sangue e ameaçado sob a violenta calibragem da segurança. Sob os óculos quase míopes, a barba desbotada e alguns fios cinzentos a tingir um cavanhaque rigorosamente desenhado pela navalha do capitalismo. Emoldurando a ossatura pouco desenvolvida, o sorriso facetado pela abundância da escassez. Desponta presunçosa, entre uma fileira de botões sufocados a silhueta proeminente de uma barriguinha ainda com ares recatados. Com um simples gole de pressa, parte em busca de mais um resgate nas suas finanças.

Ziguezagueando ofegante, uma mulher aflita, funcionalmente consumida entre pães, manteiga e o amante que acabara de manter sob sigilo momentos atrás. Enquanto seu tédio enfiado na medíocre religião da rotina sofre abalos, filhos vorazes disputam às tapas a atenção. Na tentativa desesperada de convencer as aparências permanecerem entre eles, faz de conta que é feliz e que a normalidade convive no mamão e iogurte com granola.

Uma garota manchada de batom e maquiagem pesada, mexe insistentemente nas mensagens de um potente celular de última geração. Patrocinada aos exageros de grifes, ostenta aos quatro cantos da mesa suas inúteis futilidades. Astuta, ares de profunda inocência. Beneficia-se do seu corpo supostamente intacto, para seduzir incautos e vazios consumidores de si mesmos. Não é pelo dinheiro que entrega o corpo, mas por um desejo estranho de poder. Pela satisfação esquisita de ver a submissão ajoelhar-se aos seus pés.

Um adolescente solitário, ríspido, ácido, interpõe-se entre a carência e a inteligência que pulsa. Ao invés dos jogos inocentes no vídeo game, traça estratégias de guerra, arquiteta ações quase terroristas. Brinca com fogo e faz-se refém. Invariavelmente, perde o apetite diante daquele cenário falso, montado, ridículo, onde a ausência de diálogo ocupa um espaço de destaque na mesa. Se afasta truculento e busca refúgio no seu isolamento real. Reencontra-se com pensamentos suicidas e todas as angústias representadas num simples café da manhã.

                                                             



quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Linhas simétricas


A cena seguinte seria numa casa de vidro, rodeada por imensos pinheiros, aclimatada pelos sopros do sol, refletida por vastos personagens. Amplos em virtudes e deformidades. Alguns deles hiperativos e canhotos. Sem contar os rebeldes assimétricos, fora do padrão... Gorduchos, tatuados, cabelos coloridos, fumantes, adeptos do sedentarismo, contestadores, desafiadores do sistema. Entre “os desertores”, os esteticamente irretocáveis, as linhas perfeitas e as formas em harmonia. Juntos, dão forma à democracia. Não andam em círculos porque têm objetivos. As metas propostas são incompatíveis com a perda de tempo. Alinhados aos fundamentos da beleza, protagonizam o espetáculo em formas geométricas.   

Sejam retas e decididas, ovais e flexíveis, arredondadas e atraentes, imperfeitas e naturais, côncavas e convexas, sinuosas e sedutoras, pontilhadas de intervalos e interrupções...

Ainda assim, poderão ser simétricas.

                                            
                                                           

     


    

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Tudo off


À minha porta ergue-se do nada uma lojinha de souvenirs com valores tentadores. Entro e vasculho coisas de diferentes tamanhos, cores variadas. Em súbita aterrissagem ao solo firme da racionalidade, percebo que estou cedendo aos apelos do consumo. Imbecilmente, seduzido por coisinhas frágeis, de plástico, e sinceramente sem utilidade. Mulheres se acotovelando, carregadas de sacolas e o cartão estourando na carteira. Um sorriso obsessivo de satisfação se enfia na estratégia do comércio fácil.

Com os preços hiperinflacionados dos bens duráveis, ao invés de um veículo ou apartamento, melhor investir à preço de banana na compra de um corpo. Na vitrine dispõem-se a satisfação instantânea. De brinde, ganha-se a falsa impressão da performance invejável. Em tempos de banalizações, comercializar emoções é um mero detalhe. Vaidade inflada por quase nada.

As informações, pode-se manipulá-las, montá-las, entregá-las à especulação, torná-las rentáveis sob a visão de um mercenário. Espiões à espreita, ouvidos colados à porta prontos a disseminarem suas versões. Sons vigorosos são alardeados ao microfone em praça pública, conclamando a conivência em liquidação da oferta e procura. “Quem dá mais” reina supremo nesse leilão controverso da superficialidade.

Por motivos fúteis mata-se, rouba-se, pratica-se corrupção e às gargalhadas tripudia-se da impunidade. 

Às avessas, ironicamente tudo é negociável.


                                                                

     


    

domingo, 18 de janeiro de 2015

Dissecando detalhes


E então, sobressaltada com os pesadelos que avançara sobre os sentidos, desperta e passa o restante do dia recordando os detalhes.

Lembra vagamente de uma chuva tamborilando contra o teto, o céu negro em veludo preto e as vidraças rabiscadas em água ainda moderada. Embalada à vácuo, deitada e afogada numa poça de cabelos, um animal ferido, tentando romper as barreiras intransponíveis das metáforas.

Perdida numa floresta negra, entre árvores densas presencia uma clareira aberta pelo fogo, que a carbonizara num raio indefinido. A nuvem de chumbo da fumaça turvam as circunstâncias. Castiga os pulmões, querendo derretê-los. Em asfixia, se debate em busca de ar.
Sob os pés, a textura das pegadas de cinzas. Os troncos fumegantes exalando junto de uma fumaça indiscreta, um emaranhado na consciência.

 Se aproxima um homem de fisionomia esgotada, sorriso predador, olhos fulminantes e intimidadores. Lábios largos e incompatíveis às formas da boca. Cabelos confusos, desgrenhados, assimetricamente distribuídos. Uma cicatriz evidente no braço esquerdo, resultado de um corte antigo nas suas funções de lavrador. As linhas delineando e mapeando os traços do seu rosto, estabelecendo nos sulcos da face e na vulnerabilidade dos seus olhos o desenho da sua idade.

Recorda dos olhos traçando as paredes, calculando cada imperfeição da pintura, dos reflexos de uma luz que quase morre nos cantos do  quarto, dos solavancos da memória que aterrissam nos seus lençóis.

Intrigada, é assediada constantemente na sensação de não ter dormido.

Ao final só os detalhes sobreviverão.


                                                           

     


    

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Linha do tempo


 Após um suspiro, deixam escapar num quase lamento... “Ah... No meu tempo!".

Ora, qual o tempo referido?

Em represália a essa prece retrógrada, apresento meu argumento: Razoavelmente pondero: Não existe esse tempo requerido. O tempo passado pode servir apenas para amparar as saudades. Se ele trouxe a tristeza das perdas em vários segmentos, paradoxalmente ele concedeu credenciais para não voltar. O tempo presente é o agora. Mesmo sob o jugo da morte, ainda assim restaria o álibi do tempo, que embora não permita interrupção, guarda uma brecha onde pode-se trabalhar para mudar o destino da história. Esses conceitos reacionários surgem a partir de uma incompetência em conviver com o inexorável. Não se pode escapar ileso das transformações. Não se atravessa incólume às mutações impostas na cadência das horas. Há que se compreender a implacabilidade das rugas e o ônus das peças desgastadas. Mesmo que seja reinventando-se em outras possibilidades, em novas medidas e outras melancolias. Esse modelo antigo de busca às reminiscências só se sustenta com a adesão de voluntários à uma causa que o giro do relógio já proferiu a sentença.

Vamos ser atemporais! Acatar com dignidade o peso do relógio. Combater a nostalgia do que não se pode recuperar. Rasgar estatutos. Promover adendos no contrato previamente sancionado, incorporar dispositivos que ressalvem o direito de rever.

Chegará o dia em que finalmente ouvirei: “Imaginou se fosse no meu tempo?”.


                                             
          

     


    

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Além do mar...


Esse cheiro incontestável que faz as asas abrirem, infla pulmões, esvoaça os cabelos e assenta o desejo de partir.

Esse breve intervalo entre a serra e a revoada de gaivotas tremulando ao balanço do vento.

Esse insondável mistério das marés incansáveis, investigando as rochas, penetrando as rachaduras das pedras, insinuando-se em ondas sua sensualidade que só é interrompida na areia da praia. Nos avanços e recuos intermitentes impõe suas ingênuas intenções.

Essas nuvens elásticas se moldando a todo instante em leves figuras, brincando saltitantes de esconde-esconde, fundindo-se às outras sem cerimônia. Capuchos soltos no ar, se divertindo na criação de formas indecifráveis.

Esse sorriso narcisista, escondendo sua metade selvagem, sua parte sarcástica. Essa mistura de sal e água de coco que recobre a pele tostada e o transpirar da liberdade.

Essa tela que rasga os padrões de tudo já foi visto antes, que separa o dia da noite com simples pinceladas de perfeição.

Esse sol esbanjado na palma da mão, no topo das idéias, mesclando de cores o oceano entre safiras azuis, amarelos dourados e verdes esmeraldas. Protegido pelas paredes do oceano, só os grãos insolúveis de sal e do tempo que não pode esperar.

Esses coqueiros inclinados sobre as águas que parecem suplicar por matar a sede. O cheiro de maresia, sabores gelados, pombos que vagueiam incansáveis revirando a areia e a curiosidade.

Essa navalha contra o ego, que sem esforço habita o imaginário coletivo de quem espicha os olhos além do horizonte. 

Entre goles, conchas e pranchas me reconheço num caiçara.