Numa viagem das mais intensas, a uma velocidade
incalculável desembarco em outra civilização. Não interpreto o
solo que piso. Desconheço o material que paira sobre as minhas
indagações. Teletransportado em um objeto acolchoado, de formas
irregulares e de características luminosas. Selecionado para um
estudo estratégico da evolução terráquea e suas extremas
ignorâncias. Meu cérebro composto por dois hemisférios iguais,
dimensões uniformes, sinapses perfeitamente ordenadas. Nada
distingue ou justifica o motivo da escolha. Existem fatores
subjetivos que também desconheço. Num movimento lateral desloco o pescoço em direção a
um balcão de madeira envelhecida e capturo entre as luzes vibrantes, um calendário com algarismos garrafais
destacando o ano de 3010.
Portando um bloco como única munição contra uma
probabilidade de memória corrompida, persisto no hábito irritante
da anotação. Essa estranha mania de registrar o tempo e vasculhar
os cadáveres e seus sintomas. Começo a me interessar por
essa viagem insólita. Aos poucos vou compreendendo as veredas desse
intrincada missão: Desenvolver diálogos compreensíveis com outras
formas de vidas e a continuação das mesmas repetições. Humanos
sendo estudados, as diversas facetas de uma mesma moeda. O bem e o
mal em mutação, anjos e demônios se sofisticando... Entre nós,
esbarram-se na calçada, no elevador, nas escadarias, na sala em
frente à TV.
Sentado e restrito a uma cadeira rústica de
carvalho, compatível com a modesta decoração do Estabelecimento,
anoto, arrolo testemunhas invisíveis para o disparate. Um parágrafo em particular dessas anotações chama a atenção: Alienígenas cada vez mais se aproximam dos nossos costumes. Copiam emoções, aprendem a seduzir. Em segundos assumem aparências, brincam de ganhar. Entre
simultâneas tentativas acendo um calmo cigarro, o que me proporciona
tempo de sobra para contabilizar quantos miseráveis minutos perdera
com o vício. Posiciono-me de forma a alcançar um ângulo
confortável sem que os olhos sejam contaminados pelo sol furioso, que
invade os cantos do sábio boteco. Através da superfície
envidraçada escaneio o ambiente. Enquanto tento distraído, saborear
o veneno gasoso que preenche meus pulmões. De um ímpeto sem
precedentes, atiro aquele invólucro branco recheado de fumaça negra
ao chão. Do lado, uma funcionária me fulmina com um olhar tão
tóxico quanto o cigarro lançado ainda queimando aos pés do meu
desleixo.
De repente a porta abre-se de par em par, fazendo
surgir uma moça de pele branca, esboçando um sorriso insidioso,
levemente irônico – Quase imperceptível. Gingando seus quadris
entre as mesas, me interpela e definitivamente me convence, sem
esforço algum. Começou a cair meu olhar em derrota. Envergonhado
pelas intenções vulgares dos instintos que por vezes assumem o
comando. As íris palpitavam ante aqueles imensos e profundos olhos
verdes. Existem nessa mulher duas identidades escondidas: O anjo, a
síntese da pureza, o paradigma do sofrimento calado. Em
contrapartida, a presunção do demônio, a que transporta a
sepultura dos vulneráveis...
Com a simples desculpa de haver conquistado o que
queria, deixa escapar...
Algo mais?
Sonolento e ainda desorientado encontro-me finalmente
materializado no ano de 2015.
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