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sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A experiência



Numa viagem das mais intensas, a uma velocidade incalculável desembarco em outra civilização. Não interpreto o solo que piso. Desconheço o material que paira sobre as minhas indagações. Teletransportado em um objeto acolchoado, de formas irregulares e de características luminosas. Selecionado para um estudo estratégico da evolução terráquea e suas extremas ignorâncias. Meu cérebro composto por dois hemisférios iguais, dimensões uniformes, sinapses perfeitamente ordenadas. Nada distingue ou justifica o motivo da escolha. Existem fatores subjetivos que também desconheço. Num movimento lateral desloco o pescoço em direção a um balcão de madeira envelhecida e capturo entre as luzes vibrantes, um calendário com algarismos garrafais destacando o ano de 3010.

Portando um bloco como única munição contra uma probabilidade de memória corrompida, persisto no hábito irritante da anotação. Essa estranha mania de registrar o tempo e vasculhar os cadáveres e seus sintomas. Começo a me interessar por essa viagem insólita. Aos poucos vou compreendendo as veredas desse intrincada missão: Desenvolver diálogos compreensíveis com outras formas de vidas e a continuação das mesmas repetições. Humanos sendo estudados, as diversas facetas de uma mesma moeda. O bem e o mal em mutação, anjos e demônios se sofisticando... Entre nós, esbarram-se na calçada, no elevador, nas escadarias, na sala em frente à TV.

Sentado e restrito a uma cadeira rústica de carvalho, compatível com a modesta decoração do Estabelecimento, anoto, arrolo testemunhas invisíveis para o disparate. Um parágrafo em particular dessas anotações chama a atenção: Alienígenas cada vez mais se aproximam dos nossos costumes. Copiam emoções, aprendem a seduzir. Em segundos assumem aparências, brincam de ganhar. Entre simultâneas tentativas acendo um calmo cigarro, o que me proporciona tempo de sobra para contabilizar quantos miseráveis minutos perdera com o vício. Posiciono-me de forma a alcançar um ângulo confortável sem que os olhos sejam contaminados pelo sol furioso, que invade os cantos do sábio boteco. Através da superfície envidraçada escaneio o ambiente. Enquanto tento distraído, saborear o veneno gasoso que preenche meus pulmões. De um ímpeto sem precedentes, atiro aquele invólucro branco recheado de fumaça negra ao chão. Do lado, uma funcionária me fulmina com um olhar tão tóxico quanto o cigarro lançado ainda queimando aos pés do meu desleixo.

De repente a porta abre-se de par em par, fazendo surgir uma moça de pele branca, esboçando um sorriso insidioso, levemente irônico – Quase imperceptível. Gingando seus quadris entre as mesas, me interpela e definitivamente me convence, sem esforço algum. Começou a cair meu olhar em derrota. Envergonhado pelas intenções vulgares dos instintos que por vezes assumem o comando. As íris palpitavam ante aqueles imensos e profundos olhos verdes. Existem nessa mulher duas identidades escondidas: O anjo, a síntese da pureza, o paradigma do sofrimento calado. Em contrapartida, a presunção do demônio, a que transporta a sepultura dos vulneráveis...

Com a simples desculpa de haver conquistado o que queria, deixa escapar...

Algo mais?
 
Sonolento e ainda desorientado encontro-me finalmente materializado no ano de 2015.


                               

                            














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