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sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Hipocrisia velada


À cabeceira da mesa, um homem compenetrado nas notícias de um jornal sujo de sangue e ameaçado sob a violenta calibragem da segurança. Sob os óculos quase míopes, a barba desbotada e alguns fios cinzentos a tingir um cavanhaque rigorosamente desenhado pela navalha do capitalismo. Emoldurando a ossatura pouco desenvolvida, o sorriso facetado pela abundância da escassez. Desponta presunçosa, entre uma fileira de botões sufocados a silhueta proeminente de uma barriguinha ainda com ares recatados. Com um simples gole de pressa, parte em busca de mais um resgate nas suas finanças.

Ziguezagueando ofegante, uma mulher aflita, funcionalmente consumida entre pães, manteiga e o amante que acabara de manter sob sigilo momentos atrás. Enquanto seu tédio enfiado na medíocre religião da rotina sofre abalos, filhos vorazes disputam às tapas a atenção. Na tentativa desesperada de convencer as aparências permanecerem entre eles, faz de conta que é feliz e que a normalidade convive no mamão e iogurte com granola.

Uma garota manchada de batom e maquiagem pesada, mexe insistentemente nas mensagens de um potente celular de última geração. Patrocinada aos exageros de grifes, ostenta aos quatro cantos da mesa suas inúteis futilidades. Astuta, ares de profunda inocência. Beneficia-se do seu corpo supostamente intacto, para seduzir incautos e vazios consumidores de si mesmos. Não é pelo dinheiro que entrega o corpo, mas por um desejo estranho de poder. Pela satisfação esquisita de ver a submissão ajoelhar-se aos seus pés.

Um adolescente solitário, ríspido, ácido, interpõe-se entre a carência e a inteligência que pulsa. Ao invés dos jogos inocentes no vídeo game, traça estratégias de guerra, arquiteta ações quase terroristas. Brinca com fogo e faz-se refém. Invariavelmente, perde o apetite diante daquele cenário falso, montado, ridículo, onde a ausência de diálogo ocupa um espaço de destaque na mesa. Se afasta truculento e busca refúgio no seu isolamento real. Reencontra-se com pensamentos suicidas e todas as angústias representadas num simples café da manhã.

                                                             



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