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domingo, 26 de fevereiro de 2012

O amor à espreita


Certamente será repentinamente surpreendida por uma astuta raposa que avançará sobre teus hábitos e te enlaçará em volta do pescoço uma pele diferente da sua. Esquecerá por uma vida que a vida que vivia era uma imposição e não uma escolha. Será ridícula vez em quando com contos de fada à bordo de um bote furado, com bilhetes açucarados, melados com apelidos caricatos. Esquecerá de si mesma e até das leis dos adultos, resumidas em não andar descalço (exceto para ser mais ágil). Não tomar chuva (exceto para ter companhia embaixo de um guarda-chuvas). Não ficar exposto ao sol do meio-dia (exceto para perder a hora sonhando). Não apoiar os cotovelos na mesa (exceto por admiração).  Não falar alto (exceto para fazer ecoar aos quatro cantos o amor que desconhecia e que inconscientemente evitava). Não falar com estranhos (exceto para aproximar-se da intimidade e tocar na privacidade). Deixar-se exposto na vontade de entregar-se.

 Dar-se-á conta que inadvertidamente ofereceu teu pescocinho imaculado para um desses vampiros prestes a abocanhar tua jugular. Junto com o sangue irá sugar sua fé, sua identidade, seu tempo, seu espaço, sua história. Bastará um breve toque na nuca para que se derreta feito manteiga, meia dúzia de  promessas embrulhadas em “verdades” por interesse, enfeitadas com laços trapaceiros. Sinto muito, descobrirá o verdadeiro sentido de estar em maus lençóis.

Surpresa, boquiaberta, despertará para olhares intensos, incompreensíveis, descarados. Atônita, verá belos e inesquecíveis sonhos em pesadelos. Participará atenta de narrações que não te incluem. Fará o possível para aparecer como destaque. Será a todo custo o gancho que faltava para um desfecho feliz. Desempenhará a mais perfeita das companheiras até perceber que o amor que alimentara era apenas uma chama que se apagaria com um simples espasmo de decisão: Não é suficiente.

Ouvirá sons de sinos por toda parte. Mudará a percepção das cores, dos defeitos, dos enfeites, das luzes, desse e de outros amores.

                                                           

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Recanto dos sonhos


Plantada entre o barulho ensurdecedor de crianças empinando pipas e de pés descalços violentando uma bola já furada, rasgada por unhas maltratadas, bolas de gude que cruzam as valas numa disputa acirrada pelos buracos, está uma casa amarela, pequena, camuflada entre o aconchego e o início da partida. Protegida por um grande portão de madeira, circundada por uma escada de cimento, onde dois garotos sentados nos desfiladeiros dos seus planos viajam livres por esconderijos escondidos na trama do futuro. Abraçados aos joelhos, vêem os últimos suspiros do sol e os degraus presos aos seus pés, encobertos pelo pó levantado nas ruas de terra solta, de histórias mofadas entre as paredes de outras casas amarelas.

Éramos a definição exata dos excessos: barulho ao mascar chiclete e chupar sorvete, acúmulo de brincadeiras sem graça,  gargalhadas sem motivo, projetos degolados ainda no berçário, paixões por absurdos platônicos, banhos exagerados em curtos intervalos, receio de serem legítimos os comentários acerca de práticas exaustivas na descoberta do corpo levar ao crescimento de pelos nas mãos, grandes olheiras escavadas no confronto com o sono. Intempestividade do imediato, rebeldia por espaços a qualquer custo, peito de aço, sonhos ilustrados nos quadrinhos, conjugações no aumentativo das dores, das paixões, das inseguranças, da fragilidade verificada no tamanho do pé.

Diante dos nossos olhos, serpenteavam meninas sugerindo denúncias de mulher no arredondamento das formas e bicos dos seios agressivos, proeminentes e pontiagudos, rompendo as fantasias dos adolescentes inflamados pelos insultos da natureza. Exibindo e exalando seus desejos em forma de jogos e malícia que nem mesmo conheciam. O gênero feminino já carrega consigo desde a concepção armas biológicas de sedução. Comportam os genes hereditários da intuição. Algumas têm cacoetes de moldar cachos nos cabelos, outras deslizam ao andar, gingam seus quadris entranhando o ar com um cheiro de vício, de viço. Espalham no ar feromônios. Passeiam em bandos com vizinhas fingindo vergonha, sussurrando segredos inconfessáveis (abafados por mãos em concha), Guiadas como flechas certeiras arremessadas por arqueiros eficientes, plenamente conscientes do alvo escolhido.

Parte do que fui ficou armazenado lá atrás, onde agora os sonhos parecem ganhar sentido.