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segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Simples assim...


 Ao longe, avisto um pequeno ponto luz, vindo de uma humilde choupana. No seu interior encontra-se um casal aproximando-se dos 90 anos. Ao som da fricção das asas dos grilos e algumas cigarras a ostentar seu potencial vocal. Ela, traja um vestido de linho com um avental por cima. Nos pés, chinelos com detalhes em crochê, improvisados com suas habilidades manuais. Carrega sobre os olhos pequenos e cinzas, um óculos de formas arredondadas. Ornamenta seu dedo franzino, com uma grossa aliança de ouro maciço, simbolizando a fidelidade que sustentará até o último suspiro. Ele, sobre os cabelos prateados, conduz um chapéu de feltro surrado, manchado de suor. Porta entre os dedos um cigarro de palha já um tanto amassado. Entre eles, a celebração permanente de todas as noites. Antes do sono, o ritual de todas as confidências, de todos os escrúpulos. Sem uma única palavra. Só o reencontro dos olhares, a certeza de ambos se vasculhando entre a fumaça que lambe a cozinha e o gato companheiro a ronronar suas reivindicações.

Travam um longo e íntimo diálogo. Não há palavras. Não precisam. Existe tal sincronicidade no amor construído pelo tempo, que o silêncio basta. Mais de meio século de convivência permitem que identifiquem o humor pelo ritmo dos passos, pelo maneio da cabeça ou pelos simples estalos provocados pela língua. O estreitamento dos laços define-se até nos movimentos de segurar a xícara de café, nos abanos familiares da expulsão de moscas intrusas, esfomeadas e exigindo o suposto direito adquirido das migalhas renegadas ao exílio dos supérfluos. As mãos, outrora firmes, agora frágeis admitem certo cansaço. Resignadas, manipulam o amor que (legitimamente) tomaram posse.

São acompanhados por um fogão à lenha, com algumas toras de madeira crepitando, queimando qualquer indício de negociata. A experiência por si só, domina as veredas e atalhos da intimidade. Compreende cada nova dobradura da pele, cada vinco audacioso e desconhecido que surge no pescoço.

Do lado de fora, cai uma neblina gelada e teimosa. Sabe a proporção do incômodo que causa, e por pirraça não prevê desistência. Gregária, cerca-se de outras gotas determinadas para promoverem o espetáculo da chuva.

Contrariando o falso conceito da opulência retratado por corações abarrotados de paixões efêmeras, a beleza do simples pode ser encerrada entre as paredes de um casebre, onde reina verdadeiramente os sentimentos mais nobres.

                                                       

     

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