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sábado, 28 de maio de 2011

Excentricidades


Carrego uma bala alojada na espinha como amuleto. As vértebras, cravejadas de ironia, às vezes cambaleiam num balé esquisito. Os vasos engalfinhados formam as nervuras do sangue que jorra intrépido e descoagulado. Entre abalos e afagos me divirto.

Os cabelos em corte moicano ou rebelados revelam os tufos desalinhados embaixo de um turbante negro. As madeixas em mechas desaprumadas insistem em esvoaçar sob as carícias e o toque dos teus dedos. Olhos caídos, às vezes murchos, desfigurados. Outras vezes, ambíguos, amplos e misteriosos.  Combinam expressão, sedução e profecias.

As estrias, corredeiras do mal anunciado, cicatrizes inevitáveis das rosas a desabrochar. As pétalas podem sofrer a dor do encanto esvaído. Ainda resiste o caule que continuará brotando e atento ao corpo renovado. As células pulsam e fervem na dança do renascimento.

Nos ombros, transportamos a carga e as fivelas pressionadas pelo destino. As excentricidades em forma de manias, compulsões, caprichos ou obsessões são as digitais originais da identidade. O peso opressivo da memória contrasta com os horizontes da fachada das nossas disparidades excêntricas.     

O coração assustado pelo repique estridente dos alvoroços, navalhado pelos golpes exatos do tempo. Ressoam à volta os açoites retumbantes e escandalosos de uma sirene espalhafatosa. Os baques de um corpo que ameaça cair em destroço são abafados pela maciez da compostura, pelo vento que sopra a brisa do silêncio.

No matagal infestado de incertezas, um comboio de luzes aflitas controla a direção e os sentidos (inclusive os contrários). Marcham absortos os tripulantes em direção ao cais. Lanças pontiagudas e contundentes empatam a travessia. A embarcação de papel estremece na colisão das cores anêmicas do possível naufrágio.

No limiar do castelo de cartas marcadas, uma barricada de troncos, pedras, cimento e uma única sentinela que vela por todos os excêntricos.
                                                                        
                                                                             

     


quinta-feira, 26 de maio de 2011

Um bar chamado divã



 


Poderia ter ajoelhado e pedido perdão pelos goles exagerados, pelo gosto pronunciado de cana. Confesso a prática delituosa, quando fui  cúmplice na prova de vinhos, caipirinhas, vodkas, amarulas e cervejas. Não quero fazer apologia às madrugadas em transas enfurecidas, usando o subterfúgio da alteração do álcool, para não lembrar com quem dividi a cama e o vapor das gotas etílicas de suor.
Foi apenas um detalhe, que para mim nunca teve importância.

Na mesa redonda masculina, onde se estabelece a convenção do happy hour, além do futebol e seus desdobramentos as mulheres também participam. Lembro às enciumadas, que os verbos “falar” e “comer” estão associados erroneamente apenas aos comentários maldosos e vulgares do sexo oposto. Somos bobos sim, crianças enfastiadas que se valem dos momentos leves do relaxamento para exorcizar demônios graúdos e monstros inofensivos, quando anestesiados. 

Nos templários de uma esquina qualquer, encontro a cumplicidade incompreensível reservada aos botecos. Não os frequento para embebedar os sentidos e perder a razão. Reservo-me a chacoalhar as idéias, rabiscar guardanapos e compartilhar os segredos inconfessáveis dos boêmios e poetas. Nada de grotesco ou absurdo. Apenas uma maneira até cultural de deixar-me leve, admitir-me de uma austeridade desnecessária. Nas mesas dos bares estendo meu divã companheiro, meu analista mais simples e mais eficiente. O encontro abstêmio do mais puro e generoso desabafo que mantinha bloqueado.

O pescoço chupado e as marcas impressas na pele poderiam ter sido desferidas no vagão do metrô, na Empresa, na rua de baixo...

O bar, foi puro e simplesmente um pretexto.



sexta-feira, 20 de maio de 2011

A trilha


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Anos atrás vi um filme Indiano que me deixou marcas.

Simples (como todos os filmes fora do circuito comercial, leiam-se não americanizados). Sem grandes pretensões, inclusive de baixo orçamento.

Na cena de encerramento a câmera era afastada e enquadrava o encontro de dois jovens namorados numa longa vereda de terra batida.

O que despertou as minhas reflexões foi a repetição dos passos, que insistentemente e concomitantemente pisaram naquele terreno para formar aquela longa e sinuosa trilha. Fiquei imaginando a obstinação representada naquela cena, aparentemente sem graça.

Acredito que cada livro, cada filme deve carregar uma mensagem (mesmo nas entrelinhas). As pessoas, indistintamente, são potencialmente diversas. Todas oferecem a multiplicidade, inibindo de vez a unanimidade que no caso específico, pode ser é burra.

Na maioria das vezes restringimos a nossa visão a perspectivas limitadas e óbvias. Impedimos (quase sempre) nossa percepção de enxergar outros ângulos. Essa expansão, chamo de inteligência. Gosto de decifrar subtextos, analisar outros panoramas (que não os meus).

 Eternamente aprendiz.

                                                              

Noturno



Invisível e impreciso um espectro caminha sobre uma passarela transparente. Nos haustos do seu ímpeto, toma goles sôfregos da nostalgia contígua. Acessa galerias noturnas, repassando a passos irregulares o passado. Cruéis e zombeteiras gracejam as saudades, testemunhas idiotas de uma encosta erma e rudimentar. Além da ponte de madeiras artesanais e degraus imperfeitos, reúnem-se os lastros queimados de uma história inacabada. O homem interrompido pelas saudades vive a crise insensata do blackout silencioso dos andarilhos – em busca dos elos perdidos e da alma que ainda esquecida, vive e voa.

Refugiado nas cavernas da amnésia consentida, observa os ponteiros cronológicos de um relógio enlouquecido, furioso, em pressa desatada. Dispersadas às talhadas, as lâminas do crucifixo golpeiam impiedosas a melancolia. Espessas camadas do gelo recobrem um copo de lembranças trincado e, enquanto isso, fervem em altíssima febre a poesia da liberdade.

Eu, que permaneci estacionado nas vielas do desencontro, ainda busco o diálogo preso nas escrituras rebuscadas do dialeto quase sagrado. Talvez o eufemismo contido na solidão seja legítimo e a premissa dos sonhos sobrevivam numa tenda ainda desconhecida. Existi ou fui apenas passageiro? Um símbolo errante ou mensageiro do futuro?  De todo modo, sei que a estrada é longa. E, eu também.

                                                                  

                                                                    

terça-feira, 17 de maio de 2011

Perdôe-me


Para compreendê-lo preciso esquecê-lo, evaporá-lo das mais rudes atividades. Abstrair-me de tal maneira a não colocá-lo como fator opressivo, agressivo ou hostil. Não quero conceber o perdão que paralisa ou evidencia culpas e ressentimentos. Quando falhei, senti a imediata necessidade de expressar as minhas humildes desculpas. Quando me senti ofendido, muitas vezes a remissão aconteceu de forma morna, parcial ou condicionada a outros interesses (incompatível com a absolvição que acredito).

Minhas falhas não têm como serem dissolvidas. Se as cometi – seja por motivos alheios à razão, elas farão parte do curso da minha história. Estarão incrustadas no meu prontuário de forma definitiva. Caberá a mim modificá-las, transformá-las em aprendizado.

Perdoar significa libertar, dar ao outro a oportunidade de melhorar e se redimir. Contrário ao “respaldo” para magoar, ofender ou trair, deve aliviar a tensão do remorso. Pedir perdão é assumir a culpa e se responsabilizar pelos danos. Em detrimento da desculpa que omite, isenta-os dos encargos que acabam desequilibrando as relações.

Não tenho o que perdoar. Nem sinto que o perdão se equilibre à minha volta, buscando espaço para ser aceito. A guilhotina que balança ameaçadora não tem o impulso da minha mão.  Descarto nesse júri o meu voto de punição.

Perdoo os que forçadamente, toleram. Quando toleram, fazem vista grossa, disfarçam, passam por cima, engolem, suportam...

Escolhi perdoar.
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sexta-feira, 13 de maio de 2011

Poison


Vestido de pardo, cigarro ao meio, viajo em zigue-zague por cabanas de chope, tentáculos de vime que fumegam à passagem de moças sem cerimônia, desfilando seus decotes e fendas. Com seus cabelos ainda molhados em coque ou rabos de cavalo, prontos para serem puxados nas horas desvairadas do sexo faminto. Derrapo na linha sinuosas das cinturas. Enceno a armadilha do cortejo. Pressinto o hálito quente do perigo, mas ardem superiores e afoitos os meus instintos antropofágicos – irracionalmente disparados.

Coleção de braços perdidos, sem os abraços que procuro. Breves e resumidas frustrações, discursos evasivos contornam a silhueta de dois polvos apressados, em busca do amor nunca revelado. A procura fugitiva dos parágrafos mal elaborados.

Mistura de línguas e bocas bisbilhoteiras que vasculham compartimentos esparsos imersos nas arestas camufladas. Destilam além das farpas dos desejos que latejam, pequenos escrúpulos dos beijos reticentes da entrega.  Os lábios, macios e entreabertos, descerram a cortina de pano vagabundo. Nos frisos da nossa arquitetura, as franjas do desperdício.

Nas cinzas de manhã seguinte, as sobras dos gravetos ainda em brasa. Despertam conosco a solidão do amor arredio. O gosto destacado de amargo, a cama resfria à nossa saída, o ar refrigerado oprime e sufoca o suspiro do tédio.

E dessa forma, mais uma noite termina.

                                                                        



quarta-feira, 11 de maio de 2011

Conectado



No novo planeta onde o comando majoritário é a internet, tive que descartar a velha máquina de escrever. Num passado de duas décadas até curso de datilografia incluí no currículo. E como sinto falta do barulho das teclas! Já não uso corretivo, agora com um simples clique deleto, altero, salvo, copio, insiro... Deus quantas opções! Se as minhas idéias travaram, se a navegação está lenta, posso recarregar a página, reiniciar a máquina, ou, em último caso, substituir o software.

Meus antigos rascunhos foram parar na lixeira. Agora todos se reportam ao deus google – detentor de todas as respostas, senhor de todas as conexões (menos as minhas), juiz de todas as causas (exceto as impossíveis). Ainda não chegou à consoante maiúscula. O programa ainda necessita de atualizações.

De assombro um pedófilo assume uma identidade fictícia e entra no MSN. Sob a proteção de um falso perfil, seduz uma criança ingênua e manipulável. Os vírus, cada vez mais sofisticados colocam a divindade sob suspeita. Estelionatários encapuzados com as máscaras da vergonha se utilizam das brechas naturais das criações humanas, violam sistemas, pirateiam informações – geralmente sigilosas. Espionam senhas, corrompem arquivos, invadem sites vulneráveis. Como hackers, colocam nosso alerta em vigia. As rachaduras desse invento revelam a fragilidade dos homens.

Enquanto isso, devassos libidinosos concentram suas frustrações no sexo virtual. Na névoa do anonimato, desferem o acúmulo das suas tímidas evoluções. Escolhem a dedo ou com os dedos, a sua inspiração. Sem a negação ou a recusa, aplicam sua performance “invejável”. Até as emoções são comercializadas. A carência e solidão são prerrogativas para que se aproveitem dessas vulnerabilidades.

Só sei de uma coisa: A nostalgia pela máquina obsoleta só aumenta e o Deus que sigo só possui conexões naturais. Ainda bem que nem tudo está perdido.

                                                         








terça-feira, 3 de maio de 2011

Maromba-RJ


Em 1998 estive lá pela terceira vez. Sempre acompanhado do amigo Klaus e do irmão (que a vida escolheu) Marcos.

Hoje, estamos distantes por uma série de razões: a própria evolução da vida explica o distanciamento. O nosso contato (até mesmo virtual) perdeu o entusiasmo - o que já era previsto.

Temos o mesmo gosto pela aventura e por conhecer novos lugares. Armados de barracas de camping, aportamos por lá. Lembro que era inverno e o frio castigava nossa aventura.

O clima de tão gelado, permitiu que eu e Marcos gelássemos cervejas no fundo de um riacho próximo à nossa pousada.

O encontro com três garotas de São Paulo e arredores, mexeu com nossos hormônios. Tanto que só nos separamos três dias depois ao final da viagem. Lindas e jovens também comungavam dos nossos interesses. Munidas de mochilas, debutavam o prazer da liberdade.
 
Comemos menos do que bebemos e ficou a imagem que não se apaga...

A indelével amizade que permanece.