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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Pela metade


O que algumas incompatibilidades nos afastariam outras identificações nos uniriam. Sejam por discrepâncias sociais ou por admirações combinadas com almas reveladas nas semelhanças. A analogia da atração estava contida na minha história e na sua liberdade. Éramos a parte maior do que não aconteceu. O destino exigiu de nós o combate fracionado. Divididos, diminuímos as chances, reduzimos a potência quando deixamos as mãos escaparem. Abreviamos por descuido nossos laços, tratos, abraços. Os desejos não alcançaram a cama e as fantasias. Eram superiores outros motivos, eram maiores argumentos que explicavam nossas procuras. Foi um amor sem reservas. De tão puro e verdadeiro só  o tempo e distância interrompeu.

Perdi-te entre os anéis exóticos e os adornos indígenas que colecionava. Tentei compreender a fênix que ilustrava suas costas e as tribais fincadas nos teus dedos. Adepto do futebol incorporei novas expressões e impressões inerentes ao surf, esporte praticado por ela. Linda, curtida pelo sol, capoeirista, amante de berimbau e de reggae, personalidade forte e espírito hippie. Dispusemo-nos a compreender a distância entre nós e a proximidade manifestada nas nossas curiosidades. Enquanto ela me satisfazia com livros, eu sabia exatamente que itens como bolsas, biquínis, chapéus e óculos saciavam seus aniversários.

Nossa relação patrão/empregado ultrapassou os limites da profissão. Com a admiração, surgiu a força da amizade. Nunca sentei num banco de areia para observá-la dropando as ondas, cavalgando sobre os sabores do mar, tropeçando sobre as vacas inevitáveis das manobras ousadas e excêntricas. De longe me limitava a conferir o acondicionamento das pranchas antes das viagens.

A praia da Joaquina - Florianópolis e Maresias – litoral norte de São Paulo tornaram-se reduto dos nossos debates. Acompanhada do seu namorado, trafegava pelo Brasil em busca de sol e ondas perfeitas. Não guardava e nem guardo nenhum amor platônico, nenhum sentimento enrustido, apenas dividia um amor sem reservas, inexplicavelmente puro, baseado na confiança. Inclusive minha ex-esposa partilhava das mesmas impressões. Tornaram-se amigas incondicionais. Estivemos em todas as apresentações de dança protagonizadas por ela. Bronzeada, panturrilhas esculpidas na dança, olhos e cabelos mel, Simples, sem ostentações. Humilde sem a arrogância dos que se acham suficientes. Cobiçada por todos que se aproximavam. Implacável quando observava seu espaço ameaçado. Capaz de sacar uma arma diante da expressão idiota  e machista: delícia.

Sabe o que mais?

Foi até divertido presenciar um playboy se desmanchando em suor diante da reação inesperada da bela que, dependendo da situação sabia encarnar a fera.

Não posso considerar-me completo convivendo com a saudade do que me falta.  Ao distanciar-me mudando de cidade, alterei naturalmente a agenda com uma nova seleção de amigos. Esqueci da identidade que carregava, dos antigos amigos vinculados à minha história. Mesmo porque imaginava que a qualquer tempo resgataria vínculos suspensos, jamais esquecidos. 

A tua perda irreparável implicou na mudança de endereço e contatos. Uma única carta ainda sobreviveu na tentativa desesperada de uma retomada. Guardo em separado uma última conversa que eventualmente recupero, onde com tristeza sublinhava a necessidade da manutenção esporádica de amigos. A atualização  referida por ela implica por vezes, recomeçar do começo. Nesse reinício eu ainda não deveria existir.

Devolve a outra metade!

                                                        


















quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Anônimos?


Engana-se quem acha que o anonimato protege os infratores. Que sob o abrigo de manipulações escapam ilesos na sua suposta privacidade. Por acaso, a causalidade os flagra sem intenção e desproposidamente (no caso, eu). O causo pode atingir o caos de consequências impensadas, quando confiscadas por olhos mercenários. Em tempos hiperinflacionados tudo está à venda (inclusive pressupostas informações). Constrangimentos são transformados em comércio. Chantagens por vantagens apelam e pelam por maldade e diversão. À frente, compromissos são ameaçados por riscos não calculados, traições correm perigo.

Trabalhei por anos numa Empresa que parece ter sido a única. Toda a minha vida parece se resumir a uma estrutura que nem existe mais. A janela da minha sala tinha como panorama frontal um motel de luxo. Algumas vezes fui testemunha de carros de polícia em companhia de mulheres destruindo álibis de companheiros em aventuras (geralmente vespertinas).

Entre as minhas atribuições diárias, estava a administração do Departamento financeiro. Cotidianamente me deslocava a pé até a Instituição bancária nas proximidades do meu trabalho para proceder às movimentações obrigatórias. Acabei desenvolvendo vínculos entre os funcionários (alguns até íntimos envolvendo filhos, esposas e residências). Era atendido, muitas vezes por uma mulher muito sedutora, cabelos curtos, esguia, bem articulada, desembaraçada e prática. Nosso contato limitava-se aos protocolos dos nossos ofícios. O banco tornou-se uma extensão da minha casa.

Controlava a Instituição bancária um homem áspero frio e inflexível. Dado a poucas palavras, arrogante, intimidava com a postura implacável dos ditadores. Soube nos bastidores que comportava no seu perfil um primata, machista e suficientemente absoluto.

Na volta sempre apressada na retomada de mais um dia estafante, vejo um carro estacionado com dois componentes em um amasso enlaçado, longo e sem delongas. De imediato pareceu-me familiares, mas segui no encalço do que me interessava. De repente passa por mim um veículo em direção ao motel com os dois flagrados momentos atrás em preliminares de tirar o fôlego. Riam sem controle e a culpa parecia apenas pressa e excitação.

Dessa vez não tive dúvidas. Tratava-se dos dois citados nesse relato.

Não me surpreende o tesão reprimido. Só imagino que hora ou outra pessoas diretamente ligadas aos dois irão surpreendê-los. Penso mais:, nas vezes que coincidentemente encontrei pessoas que nem imaginava. Pensamento primeiro: “Ufa! ainda bem que não estava fazendo nada de errado”.

                                                                

















sábado, 17 de dezembro de 2011

Contraste


Aprendi a me convencer que além das tuas curvas existiam outras fendas menos secretas. Mesmo sem querer conheci o sabor de outras bocas, a hospitalidade de outras pousadas. Compreendi que a infidelidade é apenas uma possibilidade que se manifesta casualmente, pontualmente nos pontos mais frágeis dos homens. A fidelidade que julgava apenas como um dogma religioso, foi infiel. Fui traído. Diferem-se as relações maduras das amadoras as que conseguem administrar as rachaduras. Defendi honestamente a habilidade de desmistificar o código do seu corpo. Todos os toques foram sentidos, consentidos, divididos. Da tua boca sufocada pela ausência de ar, soprei sílabas de desejos e hálito de pecados. Assumo minha postura de anjo e demônio da mesma forma que deveria acolher os créditos intermitentes de santa e de  puta. Subornei o tempo para recompor o ritmo que precisávamos. Tentei domesticar os teus vícios, frutos de uma criação protetora e me tornei prisioneiro (fui conivente). Avancei decidido sobre as tuas inseguranças. A violência da tua severidade violou a minha paciência. Fiz das minhas hesitações o quintal tranquilo do meu repouso em desespero. Tentei compreender as encruzilhadas da tua rota e me perdi entre as rochas que te guardavam. Cruzei o emaranhado complexo das tuas fantasias e fui ridículo ao ceder aos seus caprichos. Submeti o calor latino à frieza escandinava - quase me tornei frustrado por me achar culpado. Do amor definido nos bilhetes e encontros furtivos foi revelado a parcela sofrida da verdade partida. Éramos mais do que supúnhamos. Multifacetados, compostos de muitos. Não soubemos lidar com as múltiplas invasões que intimidaram nosso sono.  Bastava a  simples compreensão da renúncia necessária para evitar a solidão do vazio.

De um lado a fé no nos milagres, no invisível aos olhos limitados. Em contrapartida o cansaço, o pragmatismo, a razão aos pedaços, o equilíbrio incerto, o curso lento do otimismo, a fragilidade das verdades com sombra de dúvidas. O espanto se dá quando somos compelidos a entender que não somos um só, que além do nosso ego circulam outros projetos. A nossa satisfação está intrinsecamente atrelada a nossa própria realização. 

Em oposição ao homem comedido, econômico nos verbos ergue-se o indivíduo que escreve pelos cotovelos, não vê sentido na ativação de filtros de censura. Não se vê ameaçado nas suas poucas reservas. Entrego aos raros amigos as confidências que extrapolam o peso que consigo suportar. Do mesmo modo, sou todo ouvidos.

Emotivo (principalmente com coisas simples), intenso (com tudo que valha a pena). Continuo cometendo enganos e muitas vezes me equivoco com aparências e fingimentos. Frágil com tudo que se refere ao meu filho. Firme quando insultam ou subestimam minha inteligência.

Exerço a indiferença quando necessário, sou frio e calculista por mecanismo de sobrevivência. Por instinto pratico o egoísmo e o desprezo. Desconfio que o ódio não tenha conquistado a minha adesão por decisão. Embora saiba que ele se mantém recostado à porta, esperando por um sinal. Venero com igual entusiasmo idosos e crianças. Ambos possuem a sutileza da vida, o contraste entre nascimento e a eternidade em forma de sabedoria.

Não sou amargo nem alimento recalques pelas ilusões desfeitas. Novos enganos serão cometidos, diferentes práticas serão implantadas, antigas serão resgatadas e sigo assim...

Às vezes mais, às vezes menos... Um eterno contraste.

                                            



















quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

O mito da inocência


 Em Caraguatatuba vivi uma situação curiosa. Acompanhado de um casal de amigos (que hoje estão casados e com filho). Aproveitei de um final de semana incrível. Muito sol, algumas latas de cerveja, ondas tranquilas e romances disputavam cada palmo de areia. De aliança recente, aproveitava todas as delícias do começo (período em que transformamos o sexo em vício e descobrimos que metade de nós é tesão). As brigas não existiam e estarmos juntos era a única prioridade. As imperfeições de tão sedutoras tornavam-se perfeitas. As deformidades formavam uma névoa que impedia a percepção e encobria o que a paixão ofuscava. Sem perceber banalizamos os sentimentos. Fizemos delas um escudo contra o que poderia ocorrer. Todos os defeitos foram ignorados, todos os hábitos trivializados, todos os impedimentos foram estimulados ao limite da transgressão.  

Tínhamos como companhia uma família metódica, sistemática e cheia de convenções. Às noites, éramos separados para provavelmente evitar que as chamas atingissem os ouvidos do pudor enrubescido das tradições. Tinham uma garotinha de quatorze anos que ajudava a manter a gigantesca casa em ordem. Sem nenhuma noção das “câmeras ligadas”, não percebíamos que estávamos sendo seguidos. Nalgum momento que não consegui reconhecer fomos identificados por radares indiscretos. Pergunto-me em que momento específico se desencadeara a fantasia. Aquela garota aparentemente ingênua havia incorporado ao seu corpo ainda em formação a obsessão pelo alheio. Deixara suas fantasias criativas aflorarem sobre seus pelos em crescimento, sobre os sonhos molhados, acerca da carne macia e intacta dos seus segredos. Sobre os versos rascunhados de amores impossíveis, sobre poesias de pulsos cortados, relativos a morte de amores corrompidos, não correspondidos.

Ao despedirmo-nos, numa atitude despretensiosa e sem malícia, forneci-lhe meu cartão em resposta ao seu "sutil" pedido de contato.

Uma semana depois fomos surpreendidos com uma carta detalhando momentos de um amor inexistente. Com requintes de realidade relatava momentos construídos por sua mente sonâmbula. Boquiaberto, fiz um retrocesso de possíveis aberturas a interpretações na direção de entendimentos equivocados. Nada encontrei. Não lembro sequer a cor dos seus olhos, os detalhes das suas pernas ou a forma dos seus quadris. Obviamente todas as explicações foram inúteis. Nem os melhores argumentos seriam capazes de desfazer uma estória tão minuciosamente elaborada. O primeiro desentendimento aconteceu e depois dele nunca mais conseguimos reconstituir o que imaginávamos ser eterno. Cheguei ao extremo de me imaginar culpado. Talvez eu pudesse tentar localizá-la ou tentar consertar o engano. Tarde demais! Meus vinte e dois anos foram ludibriados por quatorze. Indignado, nunca consegui provar a imaterialidade da denúncia.

E eu pensando que fosse esperto.

                                              












quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Surge a religião...


Não deveria penetrar num terreno tão perigoso e pessoal quanto a espiritualidade. Impossível dominar a curiosidade que também me consome. Acima de qualquer apreensão está o fascínio que a humanidade preconiza para alcançar o conhecimento presumido acerca de Deus e seus desígnios. Tive como formação uma doutrina católica fundamentada por meus pais, fiéis seguidores de uma imagem distorcida da que construí. Ao invés da figura ariana criada para acompanhar a barbárie de Hitler – tentativa estúpida de selecionar uma raça supostamente superior, a substituo por um descendente africano ou uma doce mulher. Nas minhas perspectivas Deus não possui face. Suas características fogem do portfólio dos feitos, dos padrões hermeticamente manipulados para confundir. Tem o poder de me usar em meu próprio benefício. Ensina-me como praticar o desprendimento dentre tantos apegos inúteis. Contrariando as preces formais, as formulo em diálogo puro e transparente. Creio absurdamente na linguagem coloquial, sem manejos ou manobras. Um dialeto simples, sem palavras, onde o silêncio e os pensamentos traduzam todas as angústias e inquietações. O contato acontece numa força que me circunda e não desgruda de mim. Ganhar dificuldades e obstáculos significam testes de superação. Interpreto essa presença poderosa que se ocupa de mim, em fenômenos ocasionais tão intrigantes quanto misteriosos. Refiro-me a milagres que jamais serão catalogados, os isolei por ainda não compreender os meandros do solo que piso, ou que sobrevoo. Arrisco-me a acrescentar: planando por territórios estrangeiros,  escavando domínios guardados por sentinelas protetores em esferas incompreensíveis.

Pesquisas relatam a prática de rituais religiosos entre os nossos primeiros ancestrais. Provavelmente os neandertais nos ensinaram a buscar respostas ao inexplicável. A morte reina absoluta como indício de todas as buscas (em epígrafe: vida após a morte).

Avaliando comportamentos extremos e ortodoxos concluo que além das seitas, fanatismo, sacrifícios do corpo, autoflagelamento, rituais africanos como o vodu, se apresente a incerteza atormentadora suprema que arrastamos: Eternidade. Como alento aos inúmeros questionamentos ergue-se o apocalipse e a culpa como ferramentas de controle. Criamos mecanismos de defesa para a nossa fragilidade. Resumindo, somos idiotas em busca de revelações para provar a nossa inimputabilidade. As punições são nossas. Escolhemos a pena e de que forma as cumpriremos.

Pais católicos embutiram em mim todos os rituais do catolicismo. Primeira comunhão, crisma, e hóstias consagradas. O corpo de cristo resumido em farinha de trigo e água é muito pouco para a dimensão do salvador. Não sou herege ou ateu, apenas acho amadorismo o uso de meras simbologias para exercer a fé. Talvez pela necessidade conclusiva do pragmatismo minha concepção do divino seja egoisticamente cravada no meu umbigo.   

Não tenho (mesmo) idéia do que serão feitos meus átomos. Talvez sejam macerados ou convertidos em minúsculas partículas e, uma vez pó, o vento fará o transporte para o encontro com o altíssimo. 

E  a vida segue... Sigo junto sem dar folga.     

                                                         

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Nem sempre


Vias de regra as coisas nunca se configuram com base nas nossas primeiras impressões ou princípios (em formação). Ao longo da nossa vida vamos adaptando nossos limites, expandindo nossos escrúpulos. Com exceção daqueles definidos como imutáveis, muitos outros serão flexionados. As verdades consideradas definitivas sofrerão abalos, as crenças (crianças) crescerão e conquistarão autonomia. Nem sempre sou bom ou razoável. Também exerço a maldade e a loucura. Às vezes sou intransigente, arrogante e insuportavelmente caprichoso. Embora saiba reconhecer que aquilo que via era uma farsa disfarçada de vaidade, uma fuga oculta na busca incessante de ser mentira. Nem sempre acordo de acordo com o bom humor e nem priorizando a vontade de agradar. Esse compromisso em ser agradável alcança muitas vezes a indiferença. Esses traços de vilania compõem até o mais próximo da santidade. Não me joguem na fogueira!

Mudar de opinião, rever conceitos, modificar antigas estruturas, reformar verdades que fatalmente se transformarão em mentiras significa renascer, trocar a pele, o pelo, o peso, as histórias. Quando me vejo repetido em tantos enganos, tantos arrependimentos frutos de atitudes amadoras, suspiro e continuo respirando. Consequentemente cometendo outros erros e rindo dos anteriores. As falhas nem sempre são fendas fechadas. As tais lacunas entreabertas possuem brechas para negociações: Dependem de nós.

Ouvi outro dia a inacreditável história de uma mãe obsessivamente ligada ao filho sexualmente. Não posso duvidar, já que me foi apresentado provas irrefutáveis. Fico imaginando a simplicidade das minhas fantasias, do quanto sou normal em contraponto às emoções que não conheço.  Como pai, não consigo sequer supor o toque no contexto íntimo do incesto. A dubiedade entre aversão, repulsa e desejos secretos não me credencia ao conforto da sentença. Eximo-me dos julgamentos, pois o meu conhecimento ínfimo dos méritos me desobriga ao júri da questão.

Nem sempre velhos de cabelos grisalhos significam cansaço, rugas e desgaste. Podem ser revertidos em charme. Revestidos de sabedoria e segurança. Estereótipos de qualquer natureza são perigosos, vistos que nem sempre se materializam. Correspondem apenas às manifestações arbitrárias e fomentam o fermento nocivo da difamação.

Busco-me tentando saber de mim. Suspense: ou estamos em diferentes estágios ou nem sempre sou eu.

                                                                 
                                                                   







quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Estratégia


Ando um pouco cansado do aparato estratégico para fugir do convencional. Tem horas que a disposição para repetir o trajeto da conquista desgasta até o mais impreterível atleta de alcova. O truque para camuflar o bico dos seios com um band-aid não funciona mais. A intumescência pode ser disfarçada e a vulgaridade do corpo que sente pode ser aliviada, ainda assim não poderá surpreender o equilíbrio. As unhas ornamentadas de pele mostram a fúria do ciúme, o desespero do poder relativo. Fui seduzido sim pelo manejo hipnótico do teu cigarro, pelas piruetas feiticeiras que quase me levaram ao transe. Deixei-me amolecer pelo passeio suave das tuas mãos pelas pernas e cotovelos. E os pelos dourados das tuas coxas? E o perfume que corroeu minhas lembranças? E o roçar da tua língua macia nos meus dentes? E a expressão intrigante dos teus olhos sobre meu corpo entregue aos minutos seguintes? E as carícias obscenas dos sussurros aos ouvidos? E todos os desejos inundados pela libido insaciável? O cérebro acionou como estratégia a proteção: Esqueci.

Com a sensibilidade em baixa perdi a rota já estabelecida. Não pude notar as diferenças incorporadas nos teus vaidosos cabelos. Recusei-me a dividir meu tempo tentando entender suas crises, discutir assuntos emperrados, encerrados, enterrados. Em momento egoísta meus espaços afunilaram, se tornaram estreitos e propícios à individualidade. Perdão pela paciência esgotada, por não encontrar nos teus artifícios ardilosos motivos para aderir ao refúgio dos teus subterfúgios. Antes de ser dissolvido na mistura heterogênea das nossas discrepâncias, sou absolvido graças a uma medida cautelar: Inocência.

Com licença... Por não concordar com teus estratagemas, estrategicamente me retiro.






quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Aparências


De passagem por Curitiba estive num local onde os jovens se reúnem para beber. Pela falta de criatividade inventaram a denominação balada para camuflar a avidez juvenil por farra etílica. A partir dos goles a mais a timidez assume a postura de ousadia, o introvertido transfigura-se em orador, o recatado se exibe impulsionado por energia nova, esquece a insegurança e, turbinado de novo combustível torna-se atraente, viril, conquistador e socialmente visto pela ótica da liderança. Essas nomenclaturas modistas surgem como vírus que se alastram e iludem os possíveis hospedeiros (nós em destaque).

Seguindo a onda, fiz tudo parecido. Era como eu tivesse assumido por um final de semana uma personagem a partir da primeira caneca de chope. Sentado à uma mesa central,  tinha um ângulo favorável para uma mania irrecuperável: observação.

À minha frente, destacava-se um casal aparentemente perfeito. Com eles, um par de filhos lindos. Uma família modelo que cabia perfeitamente num porta-retratos em qualquer ambiente. Eis que no decorrer do espetáculo surge um novo protagonista: um garoto ainda com hormônios apavorados, daqueles que qualquer faísca de perigo causa solavancos na adrenalina. O homem estava posicionado entre vários obstáculos que impediam sua visão global, não via o diálogo secreto entre sua mulher e o moleque atrevido. Mãos que se tocaram, bocas que balbuciaram sons incompreensíveis, um bilhete que certamente continha expressões delatoras do intrigante novelo. Absorto, acompanhava o desenrolar da trama (realmente interessante).

O homem, inteiramente concentrado no cuidado das crianças. A mulher, matreiramente se dedicava ao guri. Certamente haviam incongruências só conhecidas pelos envolvidos. Só as aparências não foram capazes de seduzir a minha confiança (Desconfio até de mim).

Pensei sobre a hipotética relação segura do casal. Pressupostamente a ligação estava calcada em bases firmes. Haveriam espaços abertos? (comunicação, insatisfações, lacunas a preencher). Minha resposta faz silêncio.

Fui embora quase congelado (Meu corpo reclama ao ser exposto aos graus negativos),  mas com a cabeça fumegando. Nunca consegui lidar com ostentações, fingimento, aparências... Acho jogo sujo e desnecessário. Não quero lançar a semente da discórdia, só quero alertar que a segurança pode se revelar em pura aparência.

                      



domingo, 6 de novembro de 2011

A medida do amor


É sempre incômodo me usar como referência, me expor a ponto de entregar minhas fraquezas e admitir minhas fragilidades (próprias de um aprendiz). Colocar-me como paradigma é mais que ousadia. É permitir refletores sobre mim, ainda que inibam a minha exibição – sempre minimalista.

Anos atrás, tive que acompanhar por quinze dias a internação do meu filho num hospital infantil. Todas as noites burlava a segurança e dormia no local. Embora contra as regras do local que não admitia acompanhantes em horário noturno, rompi as regras e rasguei o estatuto.  Por amor (agora sei) queria estar perto.

Numa sexta-feira à noite, trafegando pelo berçário, uma cena me chamou a atenção: uma jovem aparentado uns dezessete anos, embalava um recém-nascido e cantava como só as mães conseguem. Fiquei curioso pela idade de uma menina tão jovem se aventurar na maternidade. Embora aparência de ambos ser discrepante, percebia-se nitidamente uma relação nova.

Sedutor e exímio estudioso do comportamento humano, interpelei discretamente uma enfermeira que abriu o dossiê...

Tratava-se de uma garota de dezoito anos (não dezessete), incorporava à sua formação de psicopedagoga trabalhos voluntários esporádicos e, naquele momento tentava acalmar um bebê órfão, abandonado no lixo, sem nome e ainda com o cordão umbilical.

Fiquei imaginando a medida dos amores ridículos que cultuei e, (mesmo inconsciente, cultivo). Enquanto existem compromissos que selecionamos como inadiáveis, em pleno final de semana, alguém dedica seu tempo a um amor que não conhecia. Esse amor incondicional que tive acesso não possui dimensão, não cobra espaço para se expandir.

Eu que só conhecia o amor egoísta, baseado em satisfações ilusórias,  me afastei. Recolhi-me de imediato ao meu exílio egoísta, composto basicamente de apelos passionais. O sentimento calmo, sublime e exato destoava  (destoa) do meu histórico.

O amor definitivo definiu-se sob a forma mais simples. Estava próximo e querendo demonstrar seu tamanho indefinido e desacreditado.

Compreendi a sua essência e entendi porque é tão difícil estar disponível para aceitá-lo.

                                                                      





quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Teoria em teste


Antes de toda e qualquer projeção de sucesso, cautelosamente cogito o fracasso. Ainda assim, por mais preparado que me imagine, surpresas ainda ameaçam o meu suposto equilíbrio.  Uma coisa posso adiantar com segurança:  Nunca acontecerão com a mesma materialidade e concretude com que foram idealizados. Verdade indiscutível é que especificamente no meu caso tem funcionado. Há ainda o buraco mais fundo do que foi previsto. Não seria exagero considerar que tudo pode piorar. Ou, por ironia, não passar de ameaça. Todas as vezes que subestimei os problemas, por ironia eles ganharam novo tamanho, cresceram e avançaram sobre as minhas ingênuas conjecturas. Quando (mesmo em crucifixo), abstraí-me e esqueci do material com que fui criado, a solução foi imediata. Elucidei a equação, simplesmente dormindo.

Depois de turbulentos fracassos, de projetos falidos, de perdas “irreversíveis” novas medidas foram adotadas. Não ouso recomendá-las, pois não detenho a patente, nem o certificado de qualidade. Apesar da aparente dispersão, sou formado de foco, invoco todos os segundos por metas, por certezas que não posso sancionar. Em duelo feroz, desperto anjos querubins e demônios que outrora foram apostas se Deus. O sagrado convive nos meus parágrafos, vive em trânsito com meus dedos e os flancos dos meus hemisférios. O profano, pretensioso e sedutor passeia sobre as minhas propriedades, penetra aos pinotes com suas invenções e traiçoeiras intenções. Habita sorrateiro na vaidade dos prazeres efêmeros, na nudez perigosa implícita no arsenal de sedução: opulência de carne.

Já não sofro decepções como antes. Vejo-as. Sinto-as... Torno-as familiar ao meu convívio. Antes da colisão já me posicionei de forma a não ser surpreendido (de preferência com os pés fincados ao chão). Já não cobro dos céus o que não consigo explicar. Não vejo Deus como protótipo do homem que gostaria de ser e não sou. Quem sabe me conhecendo melhor, passe a entender das cruzes que carrego, dos espinhos que transporto nos braços, das pedras perdidas no caminho, da minha incompetência em me aproximar da perfeição. A minha contestação não é por rebeldia ou desafio ao que certamente supera o que procuro ser. Busco profundamente atingir a essência contrária ao que me tornei: um solitário rodeado de suficiências relativas.

Eu me basto é pura ilusão.


                                                                 




terça-feira, 25 de outubro de 2011

Histórias invisíveis


Anos atrás, conheci uma garotinha hiperativa, totalmente incompatível com a vassoura que empunhava. De cabelos encaracolados, olhos mel esverdeados e um olhar de hipnotizar até os mais distraídos (estou fora da relação).

Às vésperas de um noivado que se transformaria num casamento meses depois, não olhei para aquela menininha com olhares impuros (não carrego nenhum desvio característico dos pedófilos), simplesmente visualizei uma bela mulher que o tempo moldaria.

O relógio desenfreado encarrilou suas andanças incansáveis e seus ponteiros avançaram decisivos. Acompanharam minha separação, conspiraram, tramaram novo encontro com o passado. Aquela primeira impressão que profetizei se definiu. A ninfeta virou mulher e seus encantos me acertaram.  

Solteiro de novo, disponível para aventuras, novas histórias, apto e disposto a recomeçar. Engatamos um relacionamento que não duraria. Não poderia vingar (nossos interesses eram conflitantes). Enquanto ela buscava segurança, oferecia à minha maneira momentos fluídos, saldo insuficiente para tamanho empreendimento. Minha proposta era infinitamente inferior à suas ambições perfeitamente naturais.

Fui noticiado casualmente da sua morte recentemente. Um acidente fatal interrompeu a sua vida e todos os projetos em curso. Deixou um bebê com pouco tempo de vida que só a conhecerá através de fotos e comentários. Lamentável que suas memórias tenham sido simplificadas numa criança que nem teve o privilégio de sentir o seu cheiro.

Pensei de imediato numa afirmação repercutida no meu meio: Num velório é possível verificar o índice de popularidade da vítima. Fiquei sabendo do episódio meses depois do ocorrido (nem tive oportunidade de demonstrar minha presença). Desconfio que algumas pessoas continuam desconhecendo a fatalidade.

Onde quero chegar?

E o que ficou da história?

Se possuía algum cargo importante, certamente foi substituída.

Se constituiu bens, seguramente inventário e inventariantes (muitos) foram acionados.

A minha tristeza é por perceber o quanto valemos. No caso dela, praticamente nada.   

                                                         


quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Envergonhado


Continuo observando no elemento humano a maior variedade de contrastes (faces, nuances, particularidades, possibilidades). Nada é tão interessante quanto a complexidade humana. É nela que encontro inspiração para respirar e escrever. Entretanto, certos acontecimentos me causam indignação. A simples classificação de humano às vezes soa estranho diante de certas atitudes (covardes, ratifico).

Um homem muito simples, humilde imigrante nordestino; iletrado, mas dono de uma gargalhada de causar inveja, um bom amigo da família.  Sempre presente no nosso cotidiano. Com profunda tristeza relatou seu drama e me deixou estarrecido. Depois de perder sua companheira (uma senhora que exalava o bem), foi convidado a se retirar da sua própria casa pelos seus filhos. Quando tentou regressar à sua cidade de origem foi impedido por outro filho que lá fixou residência. Enquanto relatava, lágrimas escapavam como alento aos olhos cansados. É claro que ele pode se valer de argumentações e respaldos jurídicos, mas é tarde demais. Senti que lhe faltam motivação. O sentido parece ter se afastado. A morte, abreviará o seu desgosto. 

Ainda assim, como disse Anne Frank, eu acredito na dignidade humana.

...Certamente com esforço.

                                                         


sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Fantasias


Quando entrei na sala logo vi seu rosto repetido em muitas histórias. Meu corpo entregue a manipulação (como se a mão fosse o  destino), ganhou inspiração e aspiração. Neurônios entraram em ebulição, trancos involuntários mexeram com a minha biologia. Estampava-se nos meus assomos esporádicos de insuficiência os atributos perfeitos para mais uma tentativa. O sentido todo arrumado entrou em colapso, a ordem saiu da rota, o tráfego fechou, as pernas adormeceram. Esqueci dos momentos atrás, dos sonhos dissimulados e das cicatrizes da realidade. O coração em trote indomável refletiu seus pulsos no meu uniforme azul. Denominei aquele conjunto de acaso, onde o seu nome foi o impacto do meu interesse. Sob o domínio das circunstâncias invisíveis deixei que meus olhos fechassem e meu corpo desmoronasse entre as ruínas de tantos fracassos (precisava acreditar de novo).  O incêndio se propagou sobre as ousadas e ardentes lembranças que guardei. Não buscava detalhes do amor lúdico (já  o compreendia e sabia  que a distância serviria de cautela). Perseguia a profundidade de valores que ainda desconhecia e  que,  por ironia me foi negado. Na minha frente, a surpresa disfarçada de desejos e a volúpia dos beijos roubados. Com a saciedade e o exasperado exagero das noites em claro desafogando nossas fantasias veio o vazio, a colisão de metas, o silêncio verificado na possível despedida.   

A lenta marcha dos pensamentos, a ruptura abrupta do raciocínio, os projetos desorganizados e o naufrágio inevitável daquele encontro. Foram feitas promessas que não se cumpririam, pactos que pareciam eternos, beijos que nos transportaram para locais desconhecidos. Insatisfações, traições imaginárias, fidelidade sob suspeita. O amor tão distante da história foi preterido, tomou rumo próprio. Levou consigo o estranho estado da nossa imobilidade. Debochado, ironizou da nossa fantasia.

O casamento aconteceu numa festa temática onde o traje obrigatório da fantasia foi respeitado. Rebelde, transmutou-se para outras narrativas. Foi brincar com outras histórias. Comigo, perdeu a graça.

                                            






quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Do avesso


Às vezes tenho ímpetos de furar bolos de aniversários, gargalhar em meio às lágrimas, andar de costas, fumar charuto, andar de charrete, avançar o sinal vermelho, colorir o céu de vermelho, asfixiar o mar, algemar as estrelas, galopar sobre o vento, capturar a liberdade como refém, degolar o silêncio, perder o fôlego num beijo, transar por horas a fio no topo de um edifício, brincar do jogar capoeira com uma velhinha, encoleirar os pensamentos, empoleirar os segundos, achar o ridículo engraçado, ser o tédio de agora, esgotar o vácuo inútil, alvejar um falcão em vôo, conspirar, transgredir, violar o anonimato, não sentir, não sofrer a dor, não ter medo, entrar no mar de sapatos, explorar meus pontos inconstantes, constranger um elevador em operação com cenas tórridas e impróprias, me equilibrar em trilhos antigos com vagões enferrujados, gostar de pamonhas, abominar camarão, tombar sobre pilhas de textos incompreensíveis, escrever de olhos fechados, compreender as teorias do Freud, tolerar os imbecis, navegar ileso num rio de piranhas, ser imune ao esquecimento, transformar o côncavo em convexo, voltar a dormir no tapete, caminhar por estradas assombradas, abdicar das boas maneiras, assumir uma das identidades mais cruéis dos humanos: a indiferença, reconsiderar o egoísmo como necessário, confiscar a moeda do tio patinhas, destruir com socos os sorrisos facínoras e os olhares opostos. Diametralmente, me convencer que nem de longe sou a melhor escolha. Exerço apenas um esforço sobre-humano em mudar a história. Ao invés do avesso quero ser visto ao inverso. Mudar de lugar, confrontar, discordar, exceder, omitir são argumentos válidos, mas o que preciso mesmo é me reinventar (ou melhor, não inventar uma imagem baseada na aparência. Renascer exatamente igual – já sentia falta de mim).

 Aqui estou, tão imperfeito como antes.





sábado, 10 de setembro de 2011

Metade máquina


 Carrego nas vísceras engrenagens robóticas. Divido as emoções do coração com sistemas e planilhas minuciosamente calculadas. Aprendi a não sofrer de graça, a não jogar milho aos pombos simplesmente sentado numa praça. Se um dia sofri em silêncio, abafando dores que julgava necessárias, hoje resgato as peças para serem lubrificadas e as adapto à minha proteção.

Esquecidos sobre mim hibernam feras enjauladas e famintas. Do meu lago plácido evaporam monstros indomáveis. Crescem urtigas no meu estômago, nascem calos na minha voz, estouram bombas nas minhas pernas, dependuram-se morcegos na minha luz. Agoniza um homem de carne, ossos, sangue e cérebro, transformado (ironicamente) em mais uma sucata.   

Já fui desonesto e covarde por fingir apetite sexual, quando na verdade havia saciado-o horas atrás, menti sobre verdades que eu acreditava, seduzi umas três virgens ainda lacradas por opção. Fui a salvação farsante de um crime sem fiança (violei confianças). Sem pudor, pisei na inocência, coagi e caçoei dos sonhos que não me pertenciam.

Juro que parei. A pausa aconteceu não por acaso. Joguei para o alto metade do meu corpo que ainda sentia. Agora sou só uma armadura.

Melhor assim...

                                                      


domingo, 4 de setembro de 2011

Sem censura


 Sinto um misto de aflição e excitação com a tua língua preenchendo minha orelha, percorrendo os arrepios do meu pescoço, desvendando cada sussurro pronunciado por pelos eriçados e pela colisão de dentes e línguas. O cheiro afrodisíaco e indefectível dos cabelos e o toque mágico dos teus dedos assanham a imaginação e provocam as chamas da libido. Demônios e feromônios entram em cena e juntam-se a nós. Fazem nós nos nossos fetiches: rendas vermelhas e corpo nu.

Os batimentos cardíacos aceleram, os vasos se expandem, o sangue que passeia por todos os cômodos prioriza a represa de um corpo em asfixia, de um pêndulo que almeja outras alturas. A flacidez preguiçosa e sem inspiração ganha contornos, diâmetros e ereções. Pulsa com rigidez as polegadas aflitas por hospedagem. 

Na linha da cintura dispõe-se em breve repouso um objeto irracional, irresponsavelmente guiado por estímulos instintivos de animais em fúria. Em espasmos involuntários, clama por agasalho. Os gemidos soltos nos galopes da penumbra iluminam a poesia de um corpo estendido sobre as lembranças de tantos instantes censurados (menos por nós).

Por fim, cospe as sementes após o consumo das delicias de um figo de polpa doce e delicada.



quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A silhueta


Mais uma madrugada no Bixiga. Nas cantinas invadidas por imigrantes italianos, um bando de boêmios incomoda a tranquilidade. Às mesas de madeiras forradas com toalhas quadriculadas, um quadro com fotos de personalidades na parede rústica que registra a passagem de outras histórias (não maior que a minha), famílias barulhentas gesticulando seu dialeto reconhecidamente italiano, loirinhos endiabrados de olhos claros, ignorando o relógio que exige pontualidade britânica e rigidez nos compromissos. Misturado ao molho de ervas e pimentas,  o ácido dos depoimentos.

Depois de incontáveis cervejas e pizzas como petiscos – ritual frequente dos loucos (incluíam-me neste pacote). Após o trabalho somos só festa. Rola de tudo: violões, olhares de medusa, toques embaixo das mesas, mulheres deliciosamente sem crachás e casacos, decotes pronunciados e saias minúsculas, bilhetes manchados de confidências, cinzas e declarações, brigas e rachas para rachar o prejuízo na saída. Moedas ganham valores estratosféricos nessa hora. Bolsos descapitalizados e corações afortunados. Somos muitos, não nos abandonamos em lágrimas ou euforias. Sem hipocrisia, sabemos de verdade o sabor da alegria.  

À saída, somos surpreendidos por duas garotas nas escadarias do recinto de copo na mão e o suor de quem disparou em correria. Já conhecia uma delas e confesso que fiquei envaidecido (no primeiro instante) com a presença de uma em especial. Decepcionado, não era a mim que seguiam, mas a um amigo presente (que por sinal, saiu da lá nos braços de outra). Seguiu-se um festival de ironias, discórdias e ataques infundados. Não admitia que um possível sentimento estivesse me assediando. Para evitar maiores desequilíbrios, me equilibro no resto de razão e entro no carro.   

Do interior do veículo em movimento as luzes da cidade dançam. O alvorecer encena-se de várias tonalidades, onde a cor laranja é suprema.  Prédios e edifícios parecem disputar corrida com o acelerador. A fumaça expulsa dos carros em forma de poluentes se mistura com a névoa que embrulha as esquinas.  As padarias resmungam a servil obediência londrina do despertador.  Entre cochilos e orgulho arranhado  algo me desperta...

Observo bem no alto de um prédio recém construído a silhueta de uma mulher ao piano. Indiferente ao contraste da dores da maioria, em silêncio, simplesmente  toca, sem saber que está sendo observada por segundos.

Percebo nesses momentos o quanto a vida vale a pena  e o quanto deixamos  escapar momentos especiais como aquele.  

                                                                


sábado, 20 de agosto de 2011

Irracional


Velhos de mãos dadas (atadas) se dirigem à praia para se suicidarem. São cercados de anjos manchados de roxo e caracóis desenhados nas harpas. Entre aspas, cólera e farra apertam a areia como se pudessem dominá-la. Sob nuvens delicadas exibem a textura de seda das suas faces coradas. Expõem argumentos coerentes a favor da vida, mas não são capazes de evitar os maremotos que virão. Sem explicação concreta, me vem à mente centenas de casais andando descalços dentro de uma bolha, tentando romper o elástico material plástico. Sufocados, em mutirão tentam mutilar a redoma infindável dos equívocos. Por um fio, em desafio à experiência se entregam aos braços suicidas do cansaço. Desfazem-se os laços da ilusão. Erguem-se as portas secretas das exclamações e das buscas. Fôlegos são requeridos no ar que respira lá fora. Reconheço que não ter percorrido o Caminho de Santiago a cada dia se revela numa grande frustração. Amante de trilhas, tenho absoluta certeza que antes de arrebentar a bolha, vou atravessar a experiência. Posso até adiantar os encontros, as imagens, os crucifixos, os sacrifícios, as mochilas estourando de histórias e aventuras inconcebíveis, as renúncias aos prazeres imediatos, as lagartixas largadas na beira da estrada, misturando o verde da suas costas com o vermelho valente do sol. Vejo bolha nos pés empoeirados da jornada imprevisível e descubro porque a previsibilidade está fora dos meus planos (procuro roteiros inéditos, mapas sem marcas, histórias inteiras - sem cortes nem retoques, histórias originais envolventes que seduzam com bom humor e toques de verdades).  Os intrincados fatos que intrigam a mente dos pensadores estão em extinção e, sobre este globo revestido de espessas camadas de repetições, novas petições são impetradas. Àqueles ingredientes clássicos maciçamente explorados em exagero (ciúmes, amores suspensos, paixões irracionais), adiciono truques racionais de convivência: tolero.

Administro minha rebeldia.  

                                                             



terça-feira, 16 de agosto de 2011

Por onde começo?


Olho ao redor e ando em círculos, apalpando os absurdos... Surdamente, de ouvidos se secretos, orelhas em riste, cenho curioso, esmiuçando os degraus dos meus naufrágios. Destruí as velas, apaguei os faróis e do outro lado da margem só um ponto sagrado escrito em vermelho: Descubra a saída. Na mesa, os pães pelando de quente e o leite gritando numa leiteira em fogo fervente. Dou voltas na mesa, ataco uma maçã a mordidas (como se todas as culpas do mundo estivessem na simbologia das suas tentações). As marcas dos dentes cravados revelam a crueldade quase vampiresca da mandíbula mordaz e dos caninos impressos na polpa tenra da minha vingança desnecessária.

A cama aliviada do meu peso ainda queima. Solitária, sobraram os lençóis amarfanhados, banhados pelos vestígios materiais, resquícios de batom e perfume misturados com seda e cigarros. Como protagonistas, dois corpos vencidos pelo tédio inevitável. Só o amor sobrevive sobre a paixão enfurecida que tem validade estabelecida. A exclusividade do pós, escavada a golpes simultâneos só é permitida (objetivamente) no descompromisso, na ausência de apólices. Após o êxtase, a colisão entre duas diferenças metabólicas  são inevitáveis (ainda que sob protestos). Enquanto o homem dorme a mulher sonha.

Um sofá no quarto amplo, uma estante com livros esquecidos e um gato ligeiro, de olhar intrigante. Amola suas unhas nas fibras do tecido mostarda e, com um novelo, brinca de pulo mortal, desafia as leis Newtonianas e cria sua própria extensão. Ocupa toda a largura do cômodo. Torna-se dono do espaço conquistado com a garantia dos seus bigodes.

À minha volta, gargalhadas e pouco caso do acaso. A verdade absoluta é manipulada, tripudiada, tratada com rechaço. Enquanto me concentro em detalhes filosóficos a vida segue impassível sua rotina. Nesse labirinto, onde buscamos aceleradamente encontrar saídas, sento à beira do caminho e contemplo as formigas que seguem em fileira a fila incansável das repetidas  perguntas.