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terça-feira, 4 de agosto de 2015

Breve intervalo


Numa noite qualquer, despenca uma uma chuva torrencial com pingos grossos e tão violentos que mais parecem ácido. Combinação  perfeita para o humor que a despertara. Ela, semblante impassível, mantêm-se recostada no braço da poltrona. Estava farta de ser confundida com uma menina fútil e riquinha. Era rotulada de vazia e sem conteúdo. Equivocadamente, elaboram normas ridículas, baseadas em superficialidades. E para piorar, essa tempestade repentina ainda ameaçava seus planos de exterminar mais um cigarro. Por respeito aos irmãos, ainda crianças, evitava expô-los à fumaça assassina. Suas curvas esculturais, seus olhos azuis, cabelos lisos e curtos, deixavam a nuca à mostra. Existem na mulher partes de extrema sensualidade que quase nunca são notadas. As relações em geral sofrem naufrágios à medida que estímulos visuais são subvertidos pelas sensações. Sob um jeans justíssimo, via-se delinear os contornos do pecado. As formas insinuantes e voluptuosas da quase perfeição, que erroneamente intitulariam de objeto. Esgotaria-se até a última gota para não ser identificada como uma casca apresentável.  Convicta da sua supremacia como ser humano, restaria-lhe a trégua do silêncio. Cravada no dedo anelar esquerdo uma tribal em tinta preta. Um anel gigantesco de prata recobria o desenho, passando a impressão de uma aparência adequada aos olhos convencionais. Enquanto isso, o dilúvio perde força, torna-se moderado, a ponto de finalmente liberá-la. Em trote, alcançaria em dois tempos a padaria, próxima do seu destino de fuga habitual: A praça, que servia de desafogo a outros jovens e seus conflitos. Finalmente veria os pulmões livres para o hábito, que embora nocivo a colocava no rol dos “normais”. Atravessara a avenida como um raio. Infringira por certo, o limite de velocidade. Violara seguramente, regras de sinalização ao ignorar o farol e o significado de suas cores.

Um aroma forte e característico aspergindo detrás do balcão. Aqueles instantes de pausa proporcionam após o cigarro, a combinação exata do sabor inigualável que chamam de amargo estimulante. Absorta, observava uma máquina de café gemendo e apitando o término do longo processo. Atrás de uma portinhola ouvia-se um tilintar curto de moedas em troco. O atendente que tirara o café, trocaria a xícara de mãos, sentindo a temperatura exceder os 90o. O que certamente seria suficiente para derreter-lhe a pele e quase dissolvê-los os dedos.

Após o ritual do consumo quase afrodisíaco, entregaria-se ao silêncio resignado das próprias  explicações. Calar-se não significava consentir, nem admitir. Preferia a reclusão definitiva de estar certa. Isso lhe bastava. Em passadas contidas segue desviando-se das poças d'água. Em cerca de trinta minutos estaria em confronto direto com a realidade. Tudo não passaria de um simples intervalo. 

                         
                               



















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