Mais uma madrugada no Bixiga. Nas cantinas invadidas por imigrantes italianos, um bando de boêmios incomoda a tranquilidade. Às mesas de madeiras forradas com toalhas quadriculadas, um quadro com fotos de personalidades na parede rústica que registra a passagem de outras histórias (não maior que a minha), famílias barulhentas gesticulando seu dialeto reconhecidamente italiano, loirinhos endiabrados de olhos claros, ignorando o relógio que exige pontualidade britânica e rigidez nos compromissos. Misturado ao molho de ervas e pimentas, o ácido dos depoimentos.
Depois de incontáveis cervejas e pizzas como petiscos – ritual frequente dos loucos (incluíam-me neste pacote). Após o trabalho somos só festa. Rola de tudo: violões, olhares de medusa, toques embaixo das mesas, mulheres deliciosamente sem crachás e casacos, decotes pronunciados e saias minúsculas, bilhetes manchados de confidências, cinzas e declarações, brigas e rachas para rachar o prejuízo na saída. Moedas ganham valores estratosféricos nessa hora. Bolsos descapitalizados e corações afortunados. Somos muitos, não nos abandonamos em lágrimas ou euforias. Sem hipocrisia, sabemos de verdade o sabor da alegria.
À saída, somos surpreendidos por duas garotas nas escadarias do recinto de copo na mão e o suor de quem disparou em correria. Já conhecia uma delas e confesso que fiquei envaidecido (no primeiro instante) com a presença de uma em especial. Decepcionado, não era a mim que seguiam, mas a um amigo presente (que por sinal, saiu da lá nos braços de outra). Seguiu-se um festival de ironias, discórdias e ataques infundados. Não admitia que um possível sentimento estivesse me assediando. Para evitar maiores desequilíbrios, me equilibro no resto de razão e entro no carro.
Do interior do veículo em movimento as luzes da cidade dançam. O alvorecer encena-se de várias tonalidades, onde a cor laranja é suprema. Prédios e edifícios parecem disputar corrida com o acelerador. A fumaça expulsa dos carros em forma de poluentes se mistura com a névoa que embrulha as esquinas. As padarias resmungam a servil obediência londrina do despertador. Entre cochilos e orgulho arranhado algo me desperta...
Observo bem no alto de um prédio recém construído a silhueta de uma mulher ao piano. Indiferente ao contraste da dores da maioria, em silêncio, simplesmente toca, sem saber que está sendo observada por segundos.
Percebo nesses momentos o quanto a vida vale a pena e o quanto deixamos escapar momentos especiais como aquele.
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