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quinta-feira, 28 de abril de 2011

Vendo além...



Circunspecto, tento  não ser refém do passado, perco-me no tempo distante das minhas lembranças, memórias de algodão que embrulham a minha história. Rolos de filmes largados, empilhados, esquecidos no quarto abstrato do meu devaneio.  O elenco é reduzido e os personagens estão vendados. Encontro Capítulos amassados, Cenas picotadas, enterradas além da minha captura. Os muros de aço, as gotas de sangue, o som estridente dos passos é tudo inventado. São olhos exagerados, deslumbrados e imbecilmente culpados.

Ao mirar-me no espelho me assusto com teus gestos, reproduzo a astúcia ambígua dos teus olhos. Subitamente, tento destruir o reflexo do que fui, do que sou... A medusa está à solta gingando os quadris, roçando os seios, afogando meus sussurros e calando minha volúpia com o abraço das suas coxas. A boca insinua e provoca a minha fraqueza. Olhares lascivos cegam os meus. Em libidinosa entrega submeto-me ao pecado que ilusoriamente me salva.

Intensos, doces ou viris, fixos ou oscilantes, enigmáticos ou serenos, sedutores ou ingênuos... Apenas olhares. Simples sentidos que podem explicar a loucura, que podem detonar a cavalgada dos instintos mais primitivos.

Ah, essas lentes curiosas! Desvendam, investigam, sugerem, delatam, capturam, fulminam, declaram e são capazes de fingir que nunca viram. 

                                                                     









            

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Ego


No espelho manchado de lembranças o narciso foi roubado. Riscos amarelos e negros turvam a minha viagem. Curioso, quis conferir a linha obtusa do meu precipício. Nas esquinas quase irregulares do percurso, tive medo do que esse espelho indiscreto pudesse revelar. As páginas torturadas do meu script, quase amador. As imperfeições trancafiadas no calabouço do meu silêncio.

Exilado, em órbita solitária busco o sabor do amor que nunca tive, os fiapos da saudade espalmadas no interior da moldura. Encontra-se vazia a minha varanda, nela recruto personagens para a demasia que escorre da minha história. Procuro o refúgio dos abraços e a força do amor que me enlaça em descompasso. Não reclamo dos amores que atravessaram a longa lista de experiências. Discuto apenas as oportunidades que nem me permiti perceber.

Onde ficaram os refletores? Onde se refugiaram meus heróis? Em que águas profundas mergulhou o passado?

Nesse abismo de imagens retorcidas, adormece o vulto dos ídolos soterrados, dos poetas feridos e machucados, no beijo intenso da luxúria em cascata, nos desejos secretos escondidos no véu de retalhos, formando um mosaico do meu retrato. Aos desavisados, não me recomendo. Sofro de inconstâncias irreversíveis. Sou contraindicado.

Pressionado pela ditadura das aparências, vejo o meu rosto transfigurado pela sombra do que imaginei como imagem real. Plagiando a fantasia da paixão de Narciso. Impreciso, impassível me espero. O tempo na sua maturação há de me conceder e me revelar os segredos dessa cova que um dia será poço.

                                                              




quinta-feira, 14 de abril de 2011

Chuva de verão




Numa tarde de verão, estou amparado na minha janela. Gotas de suor evaporam com o bafejo que se dissipa nos meus arredores. Tal uma estrutura de cera, vou derretendo, me desmanchando feito sorvete. E o meu corpo, sertão árido, grita estridente por água.

Sinto um cheiro que me reporta a solo encharcado, grama molhada, velas acesas, pólvora vencida...

Formigas de asas dão o primeiro alerta de tempo instável. A atmosfera sufocada reage e, quase em fúria, rompe os lacres que armazenam a composição da vida. Aos baldes, são descartados o alívio.

Nesse momento de garganta seca, lábios sequiosos, rogam na minha crise, uma chuva de grãos, ao invés das gotas. Em oposição ao liquido, o sólido parece ser mais oportuno. Na verdade fome e sede se confundem.

Pela vidraça, tento tocar os primeiros pingos que escorrem ligeiros e organizados. A língua, vítima da estiagem, molha por fim, as palavras. Meu rosto borrado por marcas de lama e insígnias do tempo são removidas pela chuva, que de braços abertos recebo e abraço.

Sou parte desse lamento. Faço parte desse espetáculo - A natureza expõe sua face despudorada. Deixa-se desnudar sem cálculos e sem medidas. Arranca as vestes fatigadas, revela sua pele branca, imaculada, santa.

Do mormaço que cuspia farpas, sobrou poças fragmentadas, estilhaços de espelho que reproduzem frestas de um sol ainda tímido, acanhado. Do corpo em febre, abrasado, das labaredas que antes lambiam minha estação, restou um cheiro de grama orvalhada, uma alma lavada. 

                              
                                                                      




      

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Na lembrança


Anos atrás, viajava conosco (amigos para sempre), um jovem magro e alto, cabelos revoltos e um apelo estranho com as mulheres. Sim, porque nunca compreendi ao certo que espécie de sedução ele possuía para conquistar todas as mulheres. Nunca consegui enxergar os atributos que o faziam brilhar perante as moças. Mas enfim... Minha visão era outra, e as motivações também. Juntos, repartimos saudáveis e inesquecíveis momentos, geralmente em viagens de aventura.

Tratava-se de um rapaz enigmático, envolvido numa vida torta. Talvez fosse usuário de entorpecentes ou mais, que os comercializasse. Afora este suposto perfil delituoso, nunca o condenamos nem o julgamos. Não nos cabe esta tarefa da sentença (quase sempre cruel para nosso estreito conhecimento). Foram muitos mergulhos impetuosos na busca da alegria. Jovens sonhadores que faziam do sorriso, uma gargalhada.

Nem sei como ele se aproximou, mas devo reconhecer que tinha um coração enorme. Apesar do lado obscuro, nunca nos envolveu nas atividades pouco ortodoxas e nem tampouco nos causou constrangimentos. Exercia um fascínio sem fazer força nas mulheres. Cheguei à conclusão de que moças têm no geral, certa tendência ao amor bandido e mais, por mais  que as pessoas resistam, elas estão fadadas ao destino. Cedo ou tarde, o encontro será inevitável.

O Klaus, Fágner, Marcos e eu jamais fomos expostos a situações duvidosas. Nunca fomos envolvidos em qualquer dessas atividades, supostamente ilícitas. Gostávamos dele pela pureza, pela alegria, pela lealdade, pelo respeito aos nossos escrúpulos. Havia na sua “transgressão” uma ética que nunca consegui esquecer.

Tempos atrás, numa mesa de bar, fiquei sabendo da sua morte. Que pena! Aquele moleque irresponsavelmente brincalhão teria que tomar mais cuidado para viver. É tão estranho falar de cuidado para viver. Melhor acrescentar: pedir a Deus que acompanhe nossas escolhas e nos conceda oportunidades proporcionais ao nosso merecimento.

Sucumbiu a matéria, mas o espírito continua entre nós.