Numa profusão de gametas,
rompe furioso membranas emaranhadas e estabelece-se no seu trono em
companhia adjacentes de neurônios, hormônios, sinapses e
elasticidade cerebral.
Nasceu. Relutou. Em
alguns momentos esperneou, aplicou pontapés. Finalmente cedeu. Sem
escolhas, o tempo de maturação se esgotou. Fazer o quê? O homem de
branco pareceu tascar-lhe uma palmada burocrática e o nascido
berrou. Primeiro teste para os pulmões. Inflou-os e não
economizou. Não teve vergonha de se esgoelar. Contrário àquele
ambiente frio, apresentava seu derradeiro manifesto através da sua
garganta, que por nada seria calada - Apregoam por aí que os bebês
choram convulsivamente por que o submetem à perda direta da mãe.
Acostumou-se desde cedo a navegar preso a um cordão. Não seria nada
fácil a adaptação ao novo ambiente. O pequeno limitou-se a
observar e absorver o novo mundo. Estranhamente, uma moça atrevida tateou-lhe o peito e checou suas articulações. Num exame quase fremente, ousou revelar sua identidade através de um carimbo no
pé. Abriu preguiçosamente os olhos ainda opacos. Fitou indeciso
as imagens distorcidas daquele objeto luminoso, que agredia sua pele sem
vincos. Tentou compreender as lágrimas da sua mãe e o sofrimento do
seu pai, abraçado aos joelhos, como se tivesse superando uma crise
de náuseas. Uma maca e um vidro grosso o separam de pensamentos pastosos e
inconstantes. Era, naquele instante, apenas um embrulho.
Movimentava-se com dificuldade, como se estivesse sendo
constantemente puxado por uma infinidade de pegajosos fios
espessos. Outrora imerso numa substância morna similar ao magma, fora
submetido a um planeta de criaturas tortas, assustadoras. Um sorriso
tímido invadiu suas feições recém expulsas do
invólucro protetor. A substância evocou as memórias marcantes de sua vida
anterior: O útero. Nostálgico, Vinham-lhe como profecias em cada
rosto, o gosto dos primeiros passos, o sabor de cada tombo
desastrado. Tão rápido quanto o pequeno fora expelido de sua
dedicada mãe, o tempo dissolveu-se, volveu em visão turva, percepção,
câmeras, flashes e lembrancinhas. Chorou novamente. Queria voltar! Sabia que havia sido real, um real líquido que escapava por entre os
dedos, mas real. Não queria este mundo tão palpável e raso.
Cobiçava voltar a nadar. Se possível, a seu tempo, aprender a voar.
O nascido
nunca mais voltou ao refúgio uterino. Não havia mais espaço para contestar.
O destino vencera.
Começou a morrer no momento em que nasceu.