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segunda-feira, 23 de maio de 2016

A origem


Numa profusão de gametas, rompe furioso membranas emaranhadas e estabelece-se no seu trono em companhia adjacentes de neurônios, hormônios, sinapses e elasticidade cerebral.

Nasceu. Relutou. Em alguns momentos esperneou, aplicou pontapés. Finalmente cedeu. Sem escolhas, o tempo de maturação se esgotou. Fazer o quê? O homem de branco pareceu tascar-lhe uma palmada burocrática e o nascido berrou. Primeiro teste para os pulmões. Inflou-os e não economizou. Não teve vergonha de se esgoelar. Contrário àquele ambiente frio, apresentava seu derradeiro manifesto através da sua garganta, que por nada seria calada - Apregoam por aí que os bebês choram convulsivamente por que o submetem à perda direta da mãe. Acostumou-se desde cedo a navegar preso a um cordão. Não seria nada fácil a adaptação ao novo ambiente. O pequeno limitou-se a observar e absorver o novo mundo. Estranhamente, uma moça atrevida tateou-lhe o peito e checou suas articulações. Num exame quase fremente, ousou revelar sua identidade através de um carimbo no pé. Abriu preguiçosamente os olhos ainda opacos. Fitou indeciso as imagens distorcidas daquele objeto luminoso, que agredia sua pele sem vincos. Tentou compreender as lágrimas da sua mãe e o sofrimento do seu pai, abraçado aos joelhos, como se tivesse superando uma crise de náuseas. Uma maca e um vidro grosso o separam de pensamentos pastosos e inconstantes. Era, naquele instante, apenas um embrulho. Movimentava-se com dificuldade, como se estivesse sendo constantemente puxado por uma infinidade de pegajosos fios espessos. Outrora imerso numa substância morna similar ao magma, fora submetido a um planeta de criaturas tortas, assustadoras. Um sorriso tímido invadiu suas feições recém expulsas do invólucro protetor. A substância evocou as memórias marcantes de sua vida anterior: O útero. Nostálgico, Vinham-lhe como profecias em cada rosto, o gosto dos primeiros passos, o sabor de cada tombo desastrado. Tão rápido quanto o pequeno fora expelido de sua dedicada mãe, o tempo dissolveu-se, volveu em visão turva, percepção, câmeras, flashes e lembrancinhas. Chorou novamente. Queria voltar! Sabia que havia sido real, um real líquido que escapava por entre os dedos, mas real. Não queria este mundo tão palpável e raso. Cobiçava voltar a nadar. Se possível, a seu tempo, aprender a voar.
O nascido nunca mais voltou ao refúgio uterino. Não havia mais espaço para contestar. O destino vencera.

Começou a morrer no momento em que nasceu.

                           
                           

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Perspectiva ampliada


 Antológico distender impressões, antes tão curtas, dos aspectos tão escrupulosos de Bruna...

Escurecia. Início de um rigoroso inverno. Logo a noite estaria cerrada. Sentados ao lado de duas janelas grandes de vidro, olhavam a chuva torrencial que castigava sem dó as vidraças. Bem que o contexto poderia sugerir uma chuva suave, onde poderiam seguir as gotas com os dedos. Seria muito mais romântico! Quem sabe uma neblina fina, com uma lareira ao fundo... À revelia, não se sucedia exatamente assim... Bruna, exercia ali toda a frieza milimetricamente calculada há anos. Garota de programa, morena, lábios selvagens, exalando sensualidade. Da carne à alma, era pura tentação. Tamanhos seus atributos de beleza, era amplamente requisitada. Sem nenhuma espécie de constrangimento, sentia-se inteiramente ressalvada pela sinceridade que articulava sem rodeios. Refutava qualquer indício de intimidade que pudesse configurar envolvimento. Segundo ela, beijo na boca envolve língua e, por conseguinte, privacidade. Sexo desprotegido suscita contato direto e ilimitado entre peles. Sua independência não admite tais exceções. Do alto da sua perspicácia, havia compreendido que todo corpo nu torna-se presa fácil.

Chegou em boa hora um café que fumegava ante os vasos sanguíneos contraídos e asfixiados pela falta de oxigênio. Agarravam-se às xícaras como a defender territórios. Bruna, erguia barricadas em torno das suas convicções. O afoito estrangeiro a aceirava com ares diabólicos. Tentava dissuadi-la do seu aparente desprezo. Experimentada, plenamente afeita às multiplicidades, algo soprava-lhe aos ouvidos para não fixar os olhos em quem a cobiçava. Havia um risco claro que a condição que há tempos adotara, pudesse sofrer abalos. Compreendia a gama de pareceres delicados: De um lado a controversa polêmica entre a ética e os valores. Paralelamente, a farsa e a dissimulação da normalidade. Considerava inadmissível todo juízo de valor que certamente lhe seria imputada. Somente ela tinha conhecimento de onde apertavam-lhe os calos. Era indubitavelmente um produto em exposição. Contrapondo-se, há que se mensurar a insatisfação daqueles que a procuram. Usava sim à exaustão, todas as peculiaridades que a natureza generosamente a concederam. Não causava-lhe embaraço comercializar o corpo. Pesava-lhe tão somente o delito de cunho social e convenhamos, hipócrita.

O espaço que dividiam era mínimo, o que exigia que ambos se contraíssem no encosto das cadeiras. Distraídos nos caminhos da fumaça que libertavam pela boca, entre uma frase e outra. Fez-se de repente um silêncio retumbante, daqueles que coagem até o piscar de olhos. Aquela fenda precisava ser encerrada, para que outros encontros pudessem se desenvolver.

Haja o que houver, sempre haverá alguém querendo puxar "à força" uma companhia para mais um café.