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terça-feira, 16 de junho de 2015

Através do espelho


Um jovem esperto, pele escura e olhos separados por sobrancelhas arqueadas, lembrando as orelhas dos felinos em riste, desconfiadas, cautelosamente à espreita, prenunciando ataques partindo de todas as direções. Cabelos negros e arredios, nariz largo e narinas ávidas por mais oxigênio, pernas extremamente finas e longas; de tão livre, corre sempre contra o vento. As ideias fervilham sobre o sossego. Inspirações, criatividade, energia, arrematam seu desenho. Com desenvoltura, descobre maneiras de vencer o tédio e a monotonia de estar sempre só. Arremessa pedras num lago próximo, escolhidas pelas formas mais compatíveis às suas mãos. Moldar as incompatíveis não é uma tarefa impossível. Diverte-se observando o rumo que tomam as pedras que deslizam na superfície transparente daquele espelho, às vezes azul, outras misturadas de marrom. Embevecido, acompanha o movimento em espiral dos seixos, as ondulações da água que aparentam material plástico, recebendo o choque. 

Tem sonhos. Muitos deles duradouros. Alguns fadados ao impossível. Outros mais palpáveis e concretos. Recursos reduzidos enfraquecem suas ambições. Queria embarcar num avião que risca o céu, deixando rastros de fumaça e ilusões que se dissipam com o vento. Imagina-se rompendo fronteiras desconhecidas, a bordo de um balão nas cores vermelho e laranja. Do alto, supõe cenários fascinantes, panoramas em vários tons, contrapondo-se ao preto e branco da sua rotina.

Além da natureza não tê-lo favorecido com o abre portas da beleza física (atributos cultuados à exaustão) pelos padrões das primeiras impressões, a cor da pele sugeria uma inferioridade que feria, tal uma haste pontiaguda. Seria hipócrita se afirmasse que possuía familiaridade irrestrita com religiões. O mais próximo que chegara, foi quando visitou uma tenda de candomblé, em companhia da sua mãe, que o enchia os ouvidos: “Tem que acreditar em alguma coisa, menino!”. Admite que aquelas pessoas vestidas de branco, o cheiro doce característico das ervas, as danças e o coro que entoavam orações pela cura não o convenceram. Não vou julgá-lo, (nem poderia). Ambos temos dificuldade em compreender os caminhos e desígnios de Deus. 

Enojado das mesmas injustiças, das repetidas carências de oportunidades,  enxerga nos trilhos da via férrea a oportunidade de abreviar parte das suas angústias. O comboio certamente seria impiedoso (exatamente como queria). O cortaria em dois. Antes de qualquer coisa, pensa em deixar como herança um par de sapatos.

Afinal, não precisaria mais dele.