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quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A silhueta


Mais uma madrugada no Bixiga. Nas cantinas invadidas por imigrantes italianos, um bando de boêmios incomoda a tranquilidade. Às mesas de madeiras forradas com toalhas quadriculadas, um quadro com fotos de personalidades na parede rústica que registra a passagem de outras histórias (não maior que a minha), famílias barulhentas gesticulando seu dialeto reconhecidamente italiano, loirinhos endiabrados de olhos claros, ignorando o relógio que exige pontualidade britânica e rigidez nos compromissos. Misturado ao molho de ervas e pimentas,  o ácido dos depoimentos.

Depois de incontáveis cervejas e pizzas como petiscos – ritual frequente dos loucos (incluíam-me neste pacote). Após o trabalho somos só festa. Rola de tudo: violões, olhares de medusa, toques embaixo das mesas, mulheres deliciosamente sem crachás e casacos, decotes pronunciados e saias minúsculas, bilhetes manchados de confidências, cinzas e declarações, brigas e rachas para rachar o prejuízo na saída. Moedas ganham valores estratosféricos nessa hora. Bolsos descapitalizados e corações afortunados. Somos muitos, não nos abandonamos em lágrimas ou euforias. Sem hipocrisia, sabemos de verdade o sabor da alegria.  

À saída, somos surpreendidos por duas garotas nas escadarias do recinto de copo na mão e o suor de quem disparou em correria. Já conhecia uma delas e confesso que fiquei envaidecido (no primeiro instante) com a presença de uma em especial. Decepcionado, não era a mim que seguiam, mas a um amigo presente (que por sinal, saiu da lá nos braços de outra). Seguiu-se um festival de ironias, discórdias e ataques infundados. Não admitia que um possível sentimento estivesse me assediando. Para evitar maiores desequilíbrios, me equilibro no resto de razão e entro no carro.   

Do interior do veículo em movimento as luzes da cidade dançam. O alvorecer encena-se de várias tonalidades, onde a cor laranja é suprema.  Prédios e edifícios parecem disputar corrida com o acelerador. A fumaça expulsa dos carros em forma de poluentes se mistura com a névoa que embrulha as esquinas.  As padarias resmungam a servil obediência londrina do despertador.  Entre cochilos e orgulho arranhado  algo me desperta...

Observo bem no alto de um prédio recém construído a silhueta de uma mulher ao piano. Indiferente ao contraste da dores da maioria, em silêncio, simplesmente  toca, sem saber que está sendo observada por segundos.

Percebo nesses momentos o quanto a vida vale a pena  e o quanto deixamos  escapar momentos especiais como aquele.  

                                                                


sábado, 20 de agosto de 2011

Irracional


Velhos de mãos dadas (atadas) se dirigem à praia para se suicidarem. São cercados de anjos manchados de roxo e caracóis desenhados nas harpas. Entre aspas, cólera e farra apertam a areia como se pudessem dominá-la. Sob nuvens delicadas exibem a textura de seda das suas faces coradas. Expõem argumentos coerentes a favor da vida, mas não são capazes de evitar os maremotos que virão. Sem explicação concreta, me vem à mente centenas de casais andando descalços dentro de uma bolha, tentando romper o elástico material plástico. Sufocados, em mutirão tentam mutilar a redoma infindável dos equívocos. Por um fio, em desafio à experiência se entregam aos braços suicidas do cansaço. Desfazem-se os laços da ilusão. Erguem-se as portas secretas das exclamações e das buscas. Fôlegos são requeridos no ar que respira lá fora. Reconheço que não ter percorrido o Caminho de Santiago a cada dia se revela numa grande frustração. Amante de trilhas, tenho absoluta certeza que antes de arrebentar a bolha, vou atravessar a experiência. Posso até adiantar os encontros, as imagens, os crucifixos, os sacrifícios, as mochilas estourando de histórias e aventuras inconcebíveis, as renúncias aos prazeres imediatos, as lagartixas largadas na beira da estrada, misturando o verde da suas costas com o vermelho valente do sol. Vejo bolha nos pés empoeirados da jornada imprevisível e descubro porque a previsibilidade está fora dos meus planos (procuro roteiros inéditos, mapas sem marcas, histórias inteiras - sem cortes nem retoques, histórias originais envolventes que seduzam com bom humor e toques de verdades).  Os intrincados fatos que intrigam a mente dos pensadores estão em extinção e, sobre este globo revestido de espessas camadas de repetições, novas petições são impetradas. Àqueles ingredientes clássicos maciçamente explorados em exagero (ciúmes, amores suspensos, paixões irracionais), adiciono truques racionais de convivência: tolero.

Administro minha rebeldia.  

                                                             



terça-feira, 16 de agosto de 2011

Por onde começo?


Olho ao redor e ando em círculos, apalpando os absurdos... Surdamente, de ouvidos se secretos, orelhas em riste, cenho curioso, esmiuçando os degraus dos meus naufrágios. Destruí as velas, apaguei os faróis e do outro lado da margem só um ponto sagrado escrito em vermelho: Descubra a saída. Na mesa, os pães pelando de quente e o leite gritando numa leiteira em fogo fervente. Dou voltas na mesa, ataco uma maçã a mordidas (como se todas as culpas do mundo estivessem na simbologia das suas tentações). As marcas dos dentes cravados revelam a crueldade quase vampiresca da mandíbula mordaz e dos caninos impressos na polpa tenra da minha vingança desnecessária.

A cama aliviada do meu peso ainda queima. Solitária, sobraram os lençóis amarfanhados, banhados pelos vestígios materiais, resquícios de batom e perfume misturados com seda e cigarros. Como protagonistas, dois corpos vencidos pelo tédio inevitável. Só o amor sobrevive sobre a paixão enfurecida que tem validade estabelecida. A exclusividade do pós, escavada a golpes simultâneos só é permitida (objetivamente) no descompromisso, na ausência de apólices. Após o êxtase, a colisão entre duas diferenças metabólicas  são inevitáveis (ainda que sob protestos). Enquanto o homem dorme a mulher sonha.

Um sofá no quarto amplo, uma estante com livros esquecidos e um gato ligeiro, de olhar intrigante. Amola suas unhas nas fibras do tecido mostarda e, com um novelo, brinca de pulo mortal, desafia as leis Newtonianas e cria sua própria extensão. Ocupa toda a largura do cômodo. Torna-se dono do espaço conquistado com a garantia dos seus bigodes.

À minha volta, gargalhadas e pouco caso do acaso. A verdade absoluta é manipulada, tripudiada, tratada com rechaço. Enquanto me concentro em detalhes filosóficos a vida segue impassível sua rotina. Nesse labirinto, onde buscamos aceleradamente encontrar saídas, sento à beira do caminho e contemplo as formigas que seguem em fileira a fila incansável das repetidas  perguntas.

                                                            



segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Tempo perdido


Acordo sobressaltado com as horas que parecem voar, escapando por todas as brechas, escorrendo velozes pelos furos da minha displicência. Esfrego os olhos, calço desajeitado os chinelos, tento organizar mentalmente a minha agenda. Sem perceber (mecanicamente) faço como outras vezes... Viro escravo do hábito. Sou uma taxa significativa de repetições nesse gráfico que às vezes, ousa despertar. Essa ditadura duradoura que as regras dos homens e nos colocam plantados diante das grades intransponíveis do destino.

Meu filho, que largou as fraldas há anos, que desafiou a minha nostalgia por estar ficando além de ultrapassado, órfão. (ironicamente, sinto-o se afastando a cada namoradinha, a cada nova descoberta). Subitamente atingiu outras alturas, destinos que meus olhos mesmo em olhares espichados, não o alcançariam. Diariamente, vejo uma marca que temos em comum, se deslocar arrogante. Em contestação, tenta obstruir a supremacia dos genes. Quando brincávamos na areia de moldar castelos, antes de materializá-los, vieram as ondas e afogaram nossas criações.  Por um lado foi bom: aprendemos que a nossa engenharia era frágil. Acertos e negociações foram necessários (e de comum acordo, acordamos).

Não quero falar dos erros nem dos acertos, já eles foram tão necessários quanto inevitáveis. Sou um eterno parêntese entreaberto, maturado pelas perdas e danificado quanto às peças que me faltam. Do tempo perdido, ficou o exílio da minha saudade e a garantia estendida de outros tropeços. Permito-me (teimosamente) estar visceralmente apaixonado, mas alerto: novas cláusulas foram acrescidas no contrato. Entrou em vigor novo regimento, onde o amor desfigurado foi reconfigurado no amor próprio. 

                                                                     




 

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Sem meias palavras

 

Com o vigor do tempo e suas manobras decisivas aprendi a ser incisivo. Cabisbaixo, tive receio e dúvidas, usei pretextos (que hoje seriam classificados como covardes), escureci meu texto. A sensação de vácuo no vazio das minhas frustrações foi substituída por estímulos, por novas atitudes, por uma escrita mais legível. Quando deixava que as lágrimas mirins afogassem meus caprichos ilusórios, ignorava que a seguir seria observado pelos olhos enxutos da certeza e da maturidade. Foi-se embora a dramaticidade e ficou o equilíbrio. Desanuviaram-se as nuvens contraditórias da contramão. Dissipou-se a fumaça que cobria de cinza o fogo da minha espera (os 18 anos pareciam improváveis).   

Na copa frondosa de mangueiras e goiabeiras catava (ou roubava) frutas frescas. O que tirava no pé, o consumo industrializou. O ultimato radical erradicou drasticamente meus sabores do passado. O silêncio das luzes longínquas e intermitentes adquiriu brilho próprio, atingiu outras dimensões, tornou-se razoavelmente suficiente. 

As tralhas acondicionadas sob tênues condições, romperam extremadas as extremidades da inutilidade. Foram descartadas como cascas de cebola, como caroços de manga. Da impotência algemada e amordaçada foram acionados gatilhos de sobrevivência, mecanismos de defesa.

Das dores abissais (dimensionadas em aumento), busquei os méritos que por tolice não reivindicava. Aquele racker que encontrei na fila do teatro abarrotado me ensinou a brincar de forca enquanto esperava. Sentado no chão descobri o quanto tenho de opostos. Aposto que ganhei em transformar as meias palavras em termos exatos. Desconfiado daquela figura de boné, chinelo e gírias, Submeti-me à face oculta que me escondia. Obrigou-me a sacolejar meus preconceitos. Fez-me esquecer dos julgamentos (há muito não me dava acesso ao riso). 

Tudo faz sentido quando falo pouco e compreendo mais.