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terça-feira, 26 de julho de 2011

Encontro inusitado


Muito conservador, sempre ofereci resistência ao extravagante (insegurança que foi quebrada).

Numa noite atípica de inverno, com luzes amarelas em postes corrompidos por propagandas de telesexo, fui parar às cinco da manhã em frente a uma prostituta que estuprou minha ignorância. Compreendi que acima das minhas esfarrapadas conclusões existiam outras verdades que, por hipocrisia do sistema refugava.

A história se repete: depois de vários goles de álcool (nem tenho idéia de quantos), de repente, fui convidado a conhecer uma casa com um néon vermelho na entrada: relax for men. Estava num bordel à bordo de novas descobertas.

Como um homem pode relaxar nessas circunstâncias? Até concordo que após o êxtase o relaxamento será uma consequência. Ainda mais quando se está literalmente inflamável.

Vigiados por todos os lados de seguranças desnecessários, fomos cercados por meretrizes ávidas por comercializar o corpo. Meu amigo, bem familiarizado com a situação, de copo na mão, colocou-se à vontade entre duas moedas de troca: uma negra de lábios acolchoados e a outra espalhafatosa, sem modos e ao seu modo, denunciava suas funções.

Num balcão de madeira, iluminados por luzes avermelhadas, refletidos em espelhos antigos, eu e uma dama de negro iniciamos nosso jogo. Ri desconcertado da sua piada quanto ao meu transporte (infinitamente inferior ao seu). Percebi nítida habilidade com as mãos (impossível não me imaginar ao cuidados de uma gueixa). Seus toques aveludados me derreteriam facilmente numa massagem ou simples bofetada. (que fique claro que não sou adepto de nenhuma forma de sexo anticonvencional).

Compreendemos nossas buscas. Enquanto ela (pragmaticamente) isolara suas ilusões adolescentes, dispensara a imagem futura de dois velhinhos numa poltrona em silêncio frio e Constrangedor. Sem máscaras e vestida despertou a minha libido indomável. Havia um quê de magia naquele caldeirão que fumegava a cada trago no cigarro, a cada cruzada de pernas. Eu, imaturamente refazia meus cálculos e reprogramava meus conceitos. Uma filha justificava sua heresia. O sexo pago não era fruto das fantasias impuras de uma devassa. Sua contravenção ganhava cada vez mais sentido à medida que enxergava o brilho dos seus olhos e a nobreza da maternidade. Percebi que o amor possui outras vertentes que só a coragem pode explicar.

Não houve clima para transa e a minha disposição (convenhamos), cambaleava. Houve apenas um beijo quase de súplica. Metade bêbado, metade melancia. Afastei-me por imposição das horas, mas com os olhos voltados na direção do que havia deixado para trás, do que por imbecilidade desprezara.

                                                               





quinta-feira, 21 de julho de 2011

Texto silencioso


Se questionarem porque escrevo, mostrarei meus dedos lambuzados de tinta, meus rascunhos sufocados entre a inspiração e a fantasia, minha voz inquieta que encontra sossego nas margens fecundas das páginas que carrego embaixo dos dedos.  O súbito das idéias que crescem vêm dos loucos, dos exagerados, dos velhos que se renovam, dos novos que envelhecem e morrem a cada segundos, dos ideais inalcançáveis, dos meus olhos piratas em busca dos tesouros (que talvez estejam à minha espera), ou que, em represália, restrinjam meus limites amadores.

O passado, cansado passou. Resolveu corrigir a seu modo as desavenças do destino. Não são ameaçadoras suas imposições, são óbvios e naturais seus argumentos. As franjas escorridas separam o real e o invisível. Não consigo compreender-me no ato e nem de fato. Os verbos flexionados e conjugados na paciência me aguardam nessa equação. De tal dispersão, com frequência, me perco de vista. O medo que tenho do homem que sou (um sopro) que Deus definiu como um beco sem saída, um mistério além dos seus intrigantes caprichos. Com o tempo aprendi a conviver comigo, a entender as maldades e perseguições que me revestem. Ao dormir, sou presa fácil. Seria demolido como uma marreta no frágil material da minha carcaça. Por sorte, encontramos em nós algum ponto de atração: nos admiramos.

Esse escrever gratuito entra em combate com o silêncio da privacidade. Embaralho frases dialogadas no subterrâneo covarde de todas as fugas. Reconheço que sou imaterial. Salvo as boas intenções, sou impalpável. Escrevo para me afastar do gesto solitário do egoísmo, para me aproximar do ser inextinguível que sou.

Escrevo na frivolidade do acaso, por um fio me arrisco. Assumo o risco.

                                                                      


terça-feira, 19 de julho de 2011

Antigas crendices


Na minha cidade de origem, mantinha-se o hábito de colocar uma vela na mão de quem estava falecendo. Na simbologia dos mais velhos, a vela representava uma espécie de absolvição – Como se a matéria prestes a desencarnar tivesse os pecados perdoados com o ritual da superstição legitimado. Sem esse protocolo, era impossível se alcançar a salvação.

Houve um fato ocorrido há muito tempo, que um rapaz muito popular ao atravessar uma torrencial inundação foi tragado pela fúria de um rio. Com frequência, o pai dele (com a determinação de quem ama)  ainda vasculhava pontos do rio onde supostamente ocorrera o afogamento. Com uma cumbuca – espécie de cabaça, depositava uma vela acesa e devassava o curso das águas. Acreditava-se que onde o recipiente parasse, seria o local exato onde se encontraria o corpo.     

Sempre ouvia comentários sobre maus presságios caso encontrasse um cortejo fúnebre. Certo dia, voltando do colégio, ao virar a esquina, fui surpreendido com uma caravana que entoava cantos tristes e orações fúnebres. Não havia castiçais, coroas de flores nem guarda chuvas protegendo senhoras com seus chapéus cobertos por véus. Ao lado do corpo esquálido, só a dor da perda e os meus arrepios. Evidente que nenhum embasamento científico está determinado nessas superstições, ainda que acredite na sabedoria do que pouco sabemos.

                                                          




sábado, 16 de julho de 2011

Refúgio inviolável

 

Num final de tarde com o sol em declínio, as manchas encarnadas do entardecer resumem os milagres do seu corpo exposto. Com a provável aparição da lua, as estrelas em comboio parecem mais próximas. Em reverência, dispõem-se cúmplices ao meu intervalo (extremamente necessário). Esqueço por um instante do meu tamanho e, num delírio, sou Deus.

No rádio, o silêncio constrangedor é quebrado pela Marisa Monte e pela beleza indescritível do milharal de um verde absurdamente exibicionista. Hectares aos bandos, em sincronia uniforme se dobram com o agito do vento. Pela janela do veículo vejo a paz da noite que se aproxima. A natureza se derrama aos exageros em torrentes impetuosas de ostentações, com a soberba de quem tem consciência da sua superioridade.

E o que falar das memórias?

Peito rasgado pelos teus seios afiados. Nas costas, o dorso talhado pelas tuas unhas musculosas. Os vincos deixados como vestígios da posse é um traço claro da quase perda. Na garganta, as sobras do mel da tua saliva. O teu corpo insaciável, deliciosamente depositado nos desejos lascivos sugeridos nas palavras sussurradas com o hálito quente, silenciadas com a minha boca aprendiz.

O encontro selvagem com uma degenerada na selva. Sob o  jeans delineia-se o volume aparente do tesão retesado da imaginação e da luxúria encoberta pela discrição. Glúteos estrepados pelos filetes das pedras e o sexo esfolado pelas estripulias, arregaçado à exaustão.

Sobrevivi.

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quinta-feira, 14 de julho de 2011

Em busca dos sapatos


De barriga crescida e estômago escoltado pela fome, rompe desnorteado ao norte, movido por uma força ancestral que ele desconhece. Pouco conhece dos seus antepassados. Seu passado é o presente e está concentrado nos pés descalços, na pele encarquilhada dos seus motores. De passagem na passarela da procura, dribla automóveis de olhos abertos, cruza o fogo cruzado dos grossos calibres, desvenda o mistério escondido nas esquinas, contorna os postes sobrecarregados de fios clandestinos. Entre as chamas que varrem a favela, segue obstinado a pista dos seus sapatos.

Ignora obesas prostitutas, pisoteia ervas que enervam, demonstra apatia às partituras de Mozart e Beethoven - que são ensaiadas por seus colegas de pelada. O único som que interessa são dos seus passos que levantam poeira, que estremecem a base frágil da madeira que equilibra seus pares, que desequilibra a igualdade.

Há os que usam mocassins de crocodilo, sapatos italianos.

E, ainda há (como esse menino) os que correm atrás dos simples sapatos.

(Esse menino existe e Deus há de tê-lo guiado).

                                                             


sábado, 2 de julho de 2011

O som do movimento


Em plateia quase soturna sigo o roteiro de uma bailarina em seus rodopios graciosos, onde mãos delicadas trafegam no ritmo da música que ouço. Numa coreografia secreta, laços e sapatilha entregues à captura dos meus olhos brilhantes e à música imaginária. Seus passos de garça carregam a graça da melodia dos céus. Movimenta-se baixinho na frente do espelho, vestida de vermelho para contestar o rosa. Meias de seda revestem as panturrilhas torneadas e sublimes. Cabelos fixos por uma rede de renda, nas faces covas que dançam junto com seu sorriso de menina. Do corpo de porcelana, como de outros, partem sons que ouvidos sensíveis decifram...

Uma ninfa flutua a pureza dos seus movimentos. Embevecido, me agarro aos acordes da sonata e, em silêncio roubo sem qualquer constrangimento as estrelas do seu palco iluminado.  As parábolas da alma estão todas ali, disfarçadas de virgem. Ao som de um violino envaidecido, faz galhofa da minha fábula.

Em paralelo ao natural, baila de costas. À medida que se afasta, ganha amplitude de espaços e esvoaçam-se os trilhos da lógica. Só não contava com as surpresas situadas ao fundo. Nenhuma precaução, nenhuma cautela com a direção arriscada. Uma única olhadela por cima dos ombros para ganhar noção do terreno evitaria contratempos. Precipícios são possíveis e os tombos prováveis. Todas as bailarinas desistiram ou estão imóveis. Fecharam a caixa de música, apagaram as luzes e adormeceram.

Ainda assim, ouço os ruídos do vento.